Não morri.
É isso aí, para azar de vocês a Vaca mais Lucy, Charlie Brown, Schroeder e Snoopy de todas continua ruminando feliz da vida. E para comemorar um post depois de meses hibernando nada mais justo que um monte de coices pra todo lado. Haverá sangue.
Decidi mudar o formato das Leituras Bovinas. Assim como o House e o Herect, não focarei apenas em mangás em andamento, porque leio concluídos com muito mais frequência. E embora não alterarei o nome da coluna incluirei também os animes recentes que vi.
A tendência também é que eu reduza a quantidade de textos sobre reviews de animes e mangás, de modo que as Leituras Bovinas tentarão condensar o que tenho a dizer sobre o que estou lendo e vendo. É isto, espero que gostem.
Eu não gosto de ler obras esparsas, isto é, ler algo do autor agora e nem saber o que ele escreveu além daquilo. Com a literatura, cinema e música aprendi que fica muito melhor analisar qualquer obra se você conhece o máximo possível das demais obras do autor, pois assim você entende as rupturas de pensamento, os pontos em comum, as questões que mais inquietam o sujeito, etc. É claro que, sobretudo em mangás, nem sempre é fácil ler tudo, nem todas as obras estão disponíveis e traduzidas, portanto, aviso que faço essa tarefa sempre no máximo possível.
Por hoje abordarei dois autores que li recentemente: FURUYA Usamaru e MIZUKAMI Satoshi, e depois a série de filmes da TOEI DOGA, mítico estúdio que teve sua época dourada entre os anos 58-72, sob a batuta de mestres como Mori, Otsuka, Kotabe, Takahata e o jovem Miyazaki. Este texto ficará dividido em duas partes, a primeira dedicada aos mangás e a segundo aos animes da Toei Doga. Espero terminar a parte 2 ainda nesse feriadão.
FURUYA Usamaru
Furuya receberá um post próprio ‘em breve’, mas como nele comentarei apenas a fase de ouro, ou seja, os quatro primeiros mangás (Palepoli, Short Cuts, Garden, Plastic Girl), que estão em outro patamar e permanecem como alguns dos mangás mais incríveis que já li, hoje falarei do resto da carreira desse sujeito, que é muito inferior e raramente encontra lampejos interessantes.
Na edição americana de Short Cuts há uma entrevista com Furuya, realizada provavelmente entre 1999 e 2000, onde o autor comenta que abandonaria seu estilo ousado e avant-garde e entraria mais no formato padrão de mangás. Fala ainda que não pretendia perder a essência de seu estilo, mas que gostaria de construir histórias continuadas, com desenvolvimento de personagens e cenários, algo que ele fez apenas (e parcialmente) em alguns dos one-shots de Garden.
O resultado, ao menos para mim, é pobre, não condizente com o seu potencial. A explosão de criatividade e significados das primeiras obras cedem espaço a histórias empacotadas, em que a pretensão de profundidade supera a de fazer coisas realmente interessantes. O experimentalismo enfraquece, triunfando a masturbação. Marie no Kanaderu Ongaku é algo como um Tales From Topographic Oceans dos mangás, um virtuosismo que busca mais o autoelogio do que contar algo com valor. As discussões provocantes e ousadas sobre a natureza humana já não existem mais, apenas um amontoado de símbolos que forçam o leitor a pensar e pensar, e quando entender, perceber que era tudo óbvio e nada realmente profundo. O tema é basicamente o mesmo do brilhante one-shot Origin of Nudity, de Garden, mas que seja dito: há mais conteúdo e coragem nas 21 páginas de Origin que nos dois volumes soníferos de Marie. O símbolo é um recurso para ir além, e não ficar aquém. Usar o símbolo para dizer obviedade é a perda de sentido, o símbolo pelo símbolo, o fazer por fazer. Marie é um desperdício de talento.
As obras seguintes seguem a decadência, porque perdem inclusive a masturbação de Marie, ficando apenas o desejo infantil de querer ser agressivo. O ápice é Lichti Hikari Club, obra vazia de significados e que se resume a tentar impacto e provocação. Bokura no Hikari Club, além de ser fraca, é desnecessária, porque apenas diz o óbvio que qualquer leitura atenta perceberia em Lichti.
Nessa fase talvez Shounenshoujo Ryouryuuki mereça certo respeito, porque ao menos discute questões atuais e vivas com um pingo de humildade. É uma interessante coletânea de one-shots, e que discute (com mais ou menos seriedade) temas reais e atuais. Innocents Shounen Juujigun tem um início interessante, mas que infelizmente não tem scan traduzindo. Jisatsu Circle não consegue amarrar a trama consistentemente, perdendo-se em um enfrentamento superficial de tema complexo. Happiness é da linha de Shounenshoujo, mas com menos inspiração. Kanojo o Mamoru 51 no Houhou tem cenas impactantes e uma trama medíocre. Há filmes americanos péssimos sobre tragédias naturais com mais qualidade que esse mangá.
A fase atual, e a mais mainstream de todas (afinal o autor já está na Jump Square), revela um novo Furuya, mais vivo e coerente. Genkaku Picasso é interessante (embora repetitivo), pois discute algo bastante vivo no autor, isto é, a relação entre a imagem e a realidade, até que ponto aquilo que escrevo, desenho, imagino, faz realidade em mim e em outros? O autor confessa que a obra está intimamente ligada ao processo de psicoterapia que ele enfrentou nos anos anteriores. A impressão que me passa é que Genkaku Picasso é o autor revisitando o seu trabalho como mangaká, de como aquilo que ele criava influenciava ele próprio. É um tremendo avanço. É ingenuidade achar que a obra é separada do autor. Em qualquer obra há a personalidade de seu autor. Aquilo que faço fala muito de mim.
Já Teiichi no Kuni tem um ótimo começo. Não temos mais o desejo arrebatador de ser agressivo. Mantém-se o próprio estilo, mas com o conteúdo voltando a ter valor, e não apenas como ferramenta para autoelogio. Parece que o próprio Furuya enfim se deu conta que o agredir por agredir é puro infantilismo.
Numa entrevista que consta no volume final de Genkaku Picasso o autor diz que passou por terapias e entendeu algumas coisas. De uma forma ou de outra parece que desistiu do infantilismo. É certo que por outro lado parece que certos experimentalismos reduziram ainda mais, mas enfim, antes perder o experimentalismo e retornar o conteúdo que seguir a linha trágica das obras intermediárias. Realmente gostei de Genkaku Picasso e dos capítulos iniciais de Teiichi no Kuni.
Antes que digam: “ah mas as primeiras obras, que você, Vaquinha, tanto ama, são ainda mais agressivas”. É verdade, mas era uma agressividade natural, a fúria de alguém que queria falar algo que o incomodava. Nas obras seguintes essa agressividade vira comportamento banal e futilidade. A diferença é evidente.
Seja como for, Furuya é um autor com peso em suas obras, e que não passa em branco, seja quando acerta, seja quando erra, sempre deixando alguma sensação de inquietação no leitor.
Eu não posso amenizar com Furuya, sinceramente. Ele é um artista com formação diferenciada, que já provou ser de qualidade muito além da média, capaz de utilizar múltiplas influências e a partir delas criar coisas originais e agressivas.
MIZUKAMI Satoshi
Mizukami é um autor simpático que sempre dá além do que promete. De suas primeiras obras (Sanjin Sadou, Angel Onayami Soudanjo e uma antologia de one-shots) não há muito o que comentar pois não possuem muitos capítulos traduzidos. Basta dizer que as premissas das duas obras citadas são interessantes e que a antologia de histórias curtas revela bastante potencial, sobretudo naquela que abre a obra, a célebre Geko Geko, o namorado que se transforma em sapo, uma narração delirante e imaginativa que me lembra a Metamorfose de Kafka. Outra coisa que marca muito nesse one-shot é a impressão autobiográfica que transmite. Seria o sapo o próprio Mizukami? Nada contra sapos, são animais interessantes. Mas vacas são melhores.
De todo modo estas primeiras obras já revelam uma de suas características marcantes: traços simpáticos, histórias simpáticas, simples, mas que jamais se resumem a banalidades. Sem pretensionismo e arrogância ele diverte e emociona o leitor, e de quebra ainda revela que há mais coisas ali por trás de tanta simpatia.
Hoshi no Samidare, de 2005, talvez seja sua primeira obra realmente de peso. Samidare, a pequena garota que ama o mundo e por isso quer destruí-lo, e para isso faz de outro rapaz seu fiel servo. Junte a isso uma penca de animais que escolhem pessoas e fazem delas guerreiros e mais uma série de elementos fantásticos e você terá noção do que é Samidare. Obra simples, competente e emocionante. É uma daquelas que usa tantos elementos criativos que faz você pensar “puxa, por que ninguém nunca tinha feito isso antes?”. São personagens carismáticos e bem desenvolvidos. Todos possuem seu espaço de brilho. E cada personagem carrega uma mensagem, cada um representa determinado tipo de personalidade, com seus dilemas e sonhos, que se chocam com os demais. Além disso, não são escassos os momentos de drama. Há temas e questões discutidas em Samidare, mas elas não são a essência da obra, não se sobrepõem à própria e emocionante trama. E isto não é crítica, porque Samidare conta uma boa história. Aliás, nenhuma das subtramas supera a mensagem principal e que fecha a obra: ‘crescer um pouco’. Tom humilde e sincero, mas que sabe que está transmitindo algo de valor.
Rauzi, Herect, Luluzinha e outros fãs do Deus da Água de plantão devem escrever mais coisas sobre Samidare e trazer mais elogios que cada linha comporta. Aguardem a boa vontade deles.
Psycho Staff é inferior. Não é ruim, mas fica bastante aquém de Samidare. Os personagens não são tão interessantes e a trama não emociona, mesmo o final meloso. Carrega a mesma premissa do garoto escolhido por sabe-se quem para realizar uma determinada missão, que por sua vez envolve poderes sobrenaturais (neste caso psíquicos). A mesma premissa gerou algo muito interessante em Samidare, mas aqui apenas a sensação de algo repetido e sem inspiração.
As obras mais recentes são Sengoku Youko e Spirit Circle. Sobre a segunda devo dizer que o início é monótono, sendo que as digressões a vidas passadas são geralmente fracas e sem criatividade, incapazes de extrair daquelas épocas reais conteúdos. Parecem não passar de simples digressões e não uma recuperação de elementos de outras culturas e períodos históricos. Enfim, a trama tem uma ideia interessante e pode ser desenvolvida de modo competente ainda, mas por hora é pálida, parece incapaz ou ao menos não desejosa de aproveitar o máximo da potencialidade que o seu tema possibilita.
Já Sengoku Youko considero a principal obra do autor. Aqui a fantasia enfim se torna protagonista (Mizukami aprende a utilizá-la a partir de uma de suas principais virtudes, a imprevisibilidade), sem que para isso se reduza a carga emocional. A trama, embora bastante competente, não é fim em si mesma, mas abertura para as ideias que norteiam a obra e sintetizadas brilhantemente no desenvolvimento de seus personagens, que são muitos e interessantíssimos. A história se passa em um Japão feudal em que humanos, demônios e deuses coexistem, e onde há humanos que desejam se tornar demônios, demônios que desejam se tornar homens, seres que desafiam estas fronteiras. Passagens sobre identidade são surpreendentes. É um battle shounen bem acima da média. Aliás, a própria categoria battle shounen precisa ser revisada. Que seria um battle shounen? Uma história de aventura que tem batalhas ou uma história de aventura cujas batalhas são o foco? Se optamos pela primeira opção Sengoku Youko é battle shounen, se pela segunda, não.
Mizukami é muito competente em utilizar personagens. Alguns que começam como reles coadjuvantes podem, de repente, virar protagonistas. E o inverso não ocorre, protagonistas não viram coadjuvantes. Mizukami não rebaixa personagens, não os agride, não os inferioriza. Na verdade tenta dar dignidade a todos. E alguém que faz isso tem meu respeito. E é por isso que gosto muito de Sengoku Youko, porque aqui ele faz essas manobras com ainda mais habilidade que em Samidare. Essa parte atual é realmente legal, com o moleque Senya dando verdadeira aula de protagonismo em muito pseudo-herói-babaca por aí. De que personagem você mais gosta em Sengoku Youko? Hein? São tantos né, difícil escolher.
E a fantasia? Bom, imprevisibilidade. Do nada uma deusa que reproduz cópias de si mesmas. Um ser-montanha. Um tronco falante. E por aí vai. Brincar com fantasia é brincar com imaginação, quebrar rigidez, permitir ao leitor sonhar e se deixar levar pela história incrível. Não é necessário rigor lógico e conceitual. Não é necessário fundamento científico, realista, ou o que seja. É certo que muitas obras-primas fantásticas na verdade usam a fantasia para falar da realidade, mas nem isso é imprescindível. A pura e simples imaginação já é suficiente. É tudo que basta para um leitor ser feliz. E Sengoku Youko dá isso. Você tem uma aventura emocionante, cheia de reviravoltas, personagens admiráveis, coisas malucas e inesperadas, e sempre regada a fantasia. E boa fantasia.
Sei que os comentários são rápidos. Mas fiquem à vontade, comentem! Podem reclamar, xingar, exigir aprofundamentos nas críticas. Aceito todas e dialogarei a partir daí. O que coloquei é apenas ponto de início para discussões. Então é isso aí, até daqui a uns dias com TOEI DOGA.
Cadê seu post sobre o Furuya Usamaru, vaquinha?
Uma das poucas milhares de promessas de textos que não cumpri. Mas ok, esta cumprirei.
Quem tá vivo sempre aparece, hein. Não te vejo desde o FP.
Vou esperar pelo post. Mantenham o AllFiction vivo!
Como você se chamava no finado fp?
Era o Ryan/Kusuo. Ainda lembro de lá com carinho.
Dois anos depois e ainda aguardo.