O primeiro Furuya Usamaru

Nove anos atrás levianamente falei que ‘em breve‘ faria um post comentando as quatro primeiras obras de Furuya Usamaru. Na época o All Fiction estava sendo atualizado até que continuamente, então a promessa parecia até plausível. No entanto, o fato de eu ter colocado aspas em em breve já naquela época significa que de alguma forma sabia que esse texto demoraria a sair…


Eis que depois o All Fiction foi minguando aos poucos. Basicamente dos 6 redatores apenas os bons Herect e Night continuaram publicando algo, e penso que a média somada de posts tenha sido um ou no máximo dois por ano, ao menos desde meados de 2015, por aí. Ainda assim, ver anualmente o camarada leitor Emanon pedindo para eu cumprir a promessa inegavelmente cutucava e instigava a vontade de dar fim a esta dívida. Mas sempre ficava nisto. Eis que desta vez decidi resolver esta pendência de uma vez por todas.

Enfim, este é um post que vem a tratar das quatro primeiras obras publicadas por Furuya Usamaru (Palepoli, Short Cuts, Garden, Plastic Girl), aquelas que vejo como as mais ousadas, distintas, ao menos se comparando com aquelas que vieram logo depois, as sonolentas Marie, Suicide Club e outras mais. Quanto àquelas publicadas desde 2013, 2014, não as li.

Foi uma experiência interessante, afinal é lógico que tive que reler as obras e confrontar minhas percepções atuais com aquelas de quase uma década atrás.

Refiro-me a estas obras como sendo do primeiro Furuya porque a partir de Marie no Konaderu Ongaku o autor começou a tomar um rumo definitivo para os mangás mais voltados a narrativas convencionais e ao mercado mais mainstream. Há uma quebra evidente de estilos, e isto é expressado pelo próprio Furuya em uma entrevista que aparece na edição americana de Short Cuts. Inclusive nela Furuya diz que não sabia se conseguiria voltar a produzir algo no estilo daquelas primeiras obras, praticamente demarcando um fim naquela linha de criação. Certamente há nuances, temas, preferências que aparecerão em toda a carreira do autor, afinal ele continua sendo a mesma pessoa, no entanto, a intencionalidade criativa muda radicalmente na sua forma de expressão.

Este primeiro Furuya é expressão de sua trajetória como estudante de artes clássicas, seja como pintor, escultor e inclusive praticante de dança. É também resgate de seu interesse no mundo dos mangás, algo que nutria desde criança. E por fim, apresenta suas angústias, rebeldias e insatisfações. Há aqui jovem artista talentoso, ousado, talvez excessivamente chamativo, mas de todo modo alguém que tenta produzir algo de distinto.

Palepoli, publicado na célebre Garo (templo do experimentalismo e da vanguarda), é a primeira experiência do autor na área dos mangás. Furuya diz que esta obra é resultado do ato de se colocar restrição em si próprio. Palepoli é um mangá que não é um mangá, porque parte dele queria fazer o mangá e outra, não. Uma parte gostava e queria o mundo dos mangás. A outra relutava, afinal, como utilizar todo o background de culturas clássicas e vanguardistas das artes em uma indústria vista por tantos como de ‘qualidade artística inferior’?

Palepoli é um mangá feito de modo bastante fora do trivial. Não há uma narrativa única, mas uma sequência hipnotizante no formato de 4-koma, com cada página ou grupo de páginas trazendo novo tema ou pequena narrativa. Palepoli continua sendo o ápice do experimentalismo de Furuya, uma verdadeira festa na qual o autor brinca com os mais diversos estilos. Furuya é artista altamente capacitado, sabe desenhar imitando pintores da época clássica, e sabe imitar Tezuka, mangás shoujo e dezenas de coisas mais, recorrendo a diferentes tipos de técnicas e perspectivas. Cada sequência de Palepoli traz um estilo distinto, uma forma nova de expressão.

Ao participar da Lucca Comics & Games na Itália, em 2015, Furuya destaca que a obra feita na Garo foi a mais difícil produzida por ele, ao ponto de que alguns painéis exigiam dias inteiros de trabalho. Palepoli é o fundamento de sua obra, diz ele no citado evento, explicando que depois dali ele se sentia seguro de que poderia produzir qualquer tipo de material.

De fato, para muitos leitores o primeiro contato com Palepoli é impactante, porque há poucos pontos de apoio, pouca preocupação em padronização, em dar sentidos às coisas, situação típica da arte experimental.

Por mangás muitos entendem ‘histórias em quadrinhos produzidas no Japão’. Ora, uma história em quadrinhos pressupõe que o foco do mangá deva ser o eixo narrativo, a sequência de acontecimentos, o desenvolvimento dos personagens, uma ideia de ponto de partida, de ponto de chegada, etc. No experimentalismo muitas vezes não há isto, mas a busca por demonstrar que a expressão de uma ideia pode ser feita de inúmeras formas, não apenas no modo tradicional de enredo. O experimentalismo é sempre a tentativa de cruzar fronteiras, levar certo universo artístico a novos lugares ainda desconhecidos. O artista experimental é um explorador, que ousa pisar onde outros não entram, testar combinações até então vistas como absurdas, é alguém que, mais do que acertar e produzir algo coerente e agradável, tenta encontrar novos caminhos gramaticais, novas formas de expressão. O mainstream de qualquer indústria precisa dos exploradores experimentais, porque são eles que geram as novidades que depois são inseridas nas obras voltadas ao grande público. O experimentalismo é o lugar da ousadia e das tentativas, um espaço que por vezes toca o limiar entre a arte e a pesquisa técnico-científica. Ás vezes é difícil dizer se o experimentalista é um artista ou um pesquisador. Provavelmente é uma mescla de ambos.

Sem estes exploradores as mudanças são mais lentas, as rupturas, mais improváveis.

Um mangá experimental não será aproveitado da mesma maneira em que se lê, digamos, um mangá mais convencional. Na maioria dos mangás vemos autores expressando uma história contada em quadrinhos, e esta história poderia igualmente ser contada na forma apenas literária, ou em filme, game, etc. É uma história, e por mais que o leitor se apaixone pelos traços artísticos do autor, pelas belas imagens, no fim é a narrativa que o prende. Por mais espetacular que seja o traço, o estilo de desenho, sem uma narrativa que o satisfaça, o leitor desiste.

No experimentalismo é inútil buscar este porto seguro. Aqui não se trata de narrar enredos, mas de expressar temas, sentimentos, ideias, em novos formatos. É claro que o leitor pode mergulhar e encontrar tópicos e narrativas dentro do experimentalismo, mas raramente virá no caminho mais tradicional. Portanto, para se apreciar uma obra experimental é necessário se permitir a um novo modo de apreciação, específico para este tipo de criação.

Sugiro que Palepoli seja lido tanto de modo frenético, passando as sequências sem tanta preocupação de entender, porque esta experiência é empolgante, e também de modo lento, calmo, vendo cada quadro e notando como o autor foi dedicado em recorrer aos mais variados estilos. Muitas vezes Furuya recorre ao grotesco, a figuras que causam repugnância, mas mesmo estas são desenhadas com técnica. Cada painel de Palepoli permitiria uma análise própria do ponto de vista não apenas do conteúdo, mas também do estilo artístico escolhido para expressar o tema.

Ou seja, Furuya pode fazer experimentalismo com certa elasticidade, porque tem o background, tem a formação cultural e técnica.

Quanto aos temas de Palepoli eles tocam na sexualidade, no horror, na violência, nas descargas emocionais, nas pressões sociais, nos tabus religiosos, etc. Cada sequência é agressiva, às vezes voltada ao humor, às vezes apenas à violência em si. Jesus sendo usado como boneco para lutar contra insetos dá uma ideia do conteúdo da obra…

Palepoli nasce da tensão contraditória entre querer fazer mangá e ao mesmo tempo querer manter as raízes de estudos clássicos nas manifestações artísticas. O resultado é interessantíssimo, uma obra verdadeiramente vanguardista. Palepoli é o ápice de experimentalismo de Furuya, porque é a obra em que a narrativa convencional menos tem espaço. As outras três, embora ainda experimentais e longe dos mangás convencionais, já apresentam elementos que gradativamente vão levando à narrativa.

Short Cuts tem a irreverência agressiva de Palepoli, mas com menos intensidade e mais cuidado para não tocar certos temas, afinal a publicação foi em revista de maior alcance (Shogakukan). A quase ausência de temas abertamente religiosos é um exemplo disto. Quanto maior o público que você deseja alcançar, maior o risco em atingir sensibilidades ideológicas…

Enfim, Short Cuts tem dezenas de ‘cuts‘, histórias curtas, quase todas desconectadas entre si, mas invariavelmente despejando as tradicionais cenas de sexualidade, violência e outros tópicos, sempre nos mais variados estilos artísticos. A novidade de Short Cuts é que aqui Furuya escolhe um tema que serve de base: o fenômeno das kogals. Na época as kogals eram a febre da vez, garotas colegiais em uniformes colegiais usando saias curtas, meias longas, acessórios, com estilo de vida irreverente que transitava entre o ataque aos pais e à sociedade e o materialismo consumista. Em Short Cutskogals por toda parte, não só no colégio, não só em Tóquio, mas no antigo Egito, no espaço, na pré-história… As kogals estão tomando o mundo e Shibuya, o paraíso das kogals, é a nova Torre de Babel. Sugiro que o leitor assista dois filmes produzidos naquele período para entender um pouco mais o fenômeno kogal: Bounce Ko Gals (1997), de Masato Harada, e Love & Pop (1998), do famoso Hideaki Anno. Nestes filmes é possível ver como a kogal não é apenas a tradicional colegial japonesa que já era adorada, idolatrada e tornada em ícone cultural de consumo, mas um fenômeno bem mais complexo, permeado dos chamados enjo kosai, encontros pagos por homens mais velhos, independente se terminassem ou não com a relação sexual. Em uma cena do filme de Harada um Yakuza tenta entender que segredo haveria nas kogals ao ponto delas ameaçarem o mercado convencional da prostituição, ao que uma jovem responde que ‘hoje os homens adultos são crianças, então nesse mundo as crianças de verdade têm poder‘.

Com isto se entende porque em Short Cuts as kogals se tornam literalmente figuras sobre-humanas. Não é da realidade cotidiana das kogals que Furuya fala, mas do fenômeno social e cultural das kogals, de como os homens mais velhos (ainda que ele fosse jovem na época) viam as kogals, de como a sociedade via as kogals. Mais do que reflexão crítica Short Cuts é uma paródia (e quase tudo neste primeiro Furuya é paródia) do fenômeno kogal. E uma paródia divertídissima. O fenômeno kogal merece reflexões sociológicas mais profundas (e que envolve não apenas sexualidade, mas também solidão, consumismo, niilismo, tabus sociais e outros aspectos mais, e não se restringe às colegiais), mas não é o caso de fazê-lo aqui, porque em minha opinião Furuya apenas se aproveitou do fenômeno kogal para expressar a obsessão sexual de uma época, e não como objeto de estudo em si. O fenômeno kogal foi o veículo escolhido para falar de como a sociedade experimenta (ou consome) a sexualidade, e não verdadeiramente o tópico central de análise.

Talvez o espaço em que possa haver uma reflexão mais séria sobre o assunto seja Plastic Girl, mas aqui o tópico não é especificamente kogal, mas a juventude feminina e sua sexualidade sendo reprimida pela família e pelo social desde a infância. Plastic Girl traz páginas totalmente coloridas poderosas, que dançam freneticamente entre os mais variados estilos. Emi-chan, a história que fecha Garden, oferece tema similar em outra linha artística.

Em Garden, coletânea de várias histórias curtas, temos ao menos duas centradas nas kogals. Uma em que uma jovem escolhida para ser a nova Maria (virgem escolhida para ser a mãe de alguma figura transcendental) tenta fugir deste papel praticando relação sexual com um sujeito disforme chamado de Judas, e outra em que duas jovens, em um mundo de fantasia, vivem uma experiência subjetiva de sexualidade que viaja entre o real e o imaginário.

Neste primeiro Furuya tudo é experiência interior e subjetiva. As pequenas narrativas destas primeiras obras não trazem acontecimentos objetivos, mas experiências internas acerca da sociedade e seus tabus, sobre a violência, religião e, sobretudo, sexualidade. Mais do que qualquer outro tema, é certamente a sexualidade aquele que mais apela Furuya neste período. E é uma experiência subjetiva da sexualidade, de como a sexualidade é vista a partir de certo ângulo social, da sexualidade como fantasia, fetichismo. Porque nestas obras o ato sexual não aparece como algo natural ou vital, mas na forma grotesca, violenta, obsessiva. Invariavelmente esta obsessão se manifesta em quadros que retratam o sexo como algo agressivo, sujo, por vezes pecaminoso. Enfim, deixa a sensação de que mais do que sexo o tema seja obsessão de uma sociedade ou época pelo sexo, uma obsessão que faz consumismo da sexualidade.

Esta perspectiva de experiência subjetiva fica evidente em muitas situações, na forma em que a personagem de Plastic Girl é reprimida pela família até se tornar uma boneca, no enclausuramento de Emi-chan, que é ensinada que o mundo externo é cheio de pessoas tomadas por espíritos maus, ou ainda em uma das sequências mais repetidas de Palepoli, e que inclusive abre a obra: a do personagem (ou seria o próprio leitor?) escondido atrás da porta observando as tragédias acontecendo pela fresta. Refiro-me às ações bizarras e trágicas que acontecem sempre na calçada em frente a uma casa e na qual o leitor é convidado a se sentir nos olhos do morador que está escondido atrás da porta, porque vê tudo pelo buraco que permite ver quem está tocando a campainha. Pessoas são atropeladas por caminhões, tantas morrem em frente à porta do sujeito, que insiste em apenas observar.

Esta sequência talvez melhor do que qualquer outra expresse o sentido deste primeiro Furuya, alguém que está dentro e vendo as coisas acontecendo fora. Não é de acontecimentos que se trata tudo isto, mas de como se vive dentro de si estes assuntos. De certo modo, quando se mergulha em obras experimentais, entra-se no processo criativo em ato, tal como se acompanhasse o autor na sua criação, porque uma obra experimental nunca está totalmente acabada.

Último destaque deixo para a história que abre Garden, aquela inebriante sequência colorida sobre origens da nudez no jardim dos prazeres, em criação inspirada e tematizada sobre a famosa pintura de Hyeronimus Bosch. Aqui, na minha visão, brilha o surrealismo e a tendência ao absurdo, em uma digressão que até permite divagações filosóficas. Talvez seja em Garden que Furuya melhor aproveite de seu amplo background não apenas de conhecimento sobre história da arte, mas da história cultural humana. Não parece improvável apontar uma visão gnóstica aqui, com a busca pelo conhecimento de si e do mundo como o ato de se despir de tudo, até mesmo da carne, até se tornar um com o mundo, ainda que este processo seja representado em imagens grotescas e surreais. Na entrevista em Short Cuts o entrevistador (seu ex-diretor na Garo) destaca que Furuya é um raro autor que tenta tomar consciência do seu processo criativo, e em Garden isto se torna mais explícito.

Também outra história de Garden é repleta de simbolismo gnóstico, aquela dedicada ao jardim das ciências, mas esta penso que seja um enredo longo demais e enfadonho, já antecipando a sonolência de Marie. De fato Garden é a transição entre o primeiro Furuya e a fase seguinte. Aqui são apenas sete histórias, e algumas até que bastante longas, são o início dos discursos narrativos do autor.

De todo modo Origins of Nudity é um exemplo do poder do experimentalismo, porque são poucas páginas, mas cada uma repleta de potência, aberta a inúmeras reflexões. Mais do que uma narrativa, é uma experiência que permite muitas narrativas reflexivas. Uma obra experimental se situa no estágio de fluxo em que as coisas ainda não são concretas e, portanto, mais abertas às múltiplas possibilidades hermenêuticas. É certo que mesmo narrativas mais convencionais podem ser interpretadas de diferentes ângulos, mas no experimentalismo isto se torna substancial. A partir de Marie as obras de Furuya caminham sempre mais do abstrato-experimental ao concreto-narrativo.

E uma obra experimental é isto, uma divagação no processo, mais do que no produto. E penso que este primeiro Furuya, do ponto de vista da gramática, do estilo, tenha lançado sementes poderosas que depois podem ser aplicadas a narrativas mais convencionais (coisa que de fato ele passou a fazer). Mais do que o conteúdo, é o estilo de Furuya que provoca, uma atitude inovadora sem a qual o progresso se torna muito mais lento.

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