A estranha e sedutora cosmologia de Bleach: reflexões sobre o arco de Soul Society

Passados dez anos enfim teremos o retorno do anime de Bleach, finalmente trazendo o arco final da série, a gloriosa guerra com o pessoal quincy, de narrativa confusa e preguiçosa, mas espetacular nas batalhas. No entanto, este texto não é sobre o último arco, e sim sobre o primeiro, o da invasão a Soul Society, que mal ou bem é o arco que projetou Bleach e o impediu de ser lançado ao ostracismo eterno.

O início de Bleach não é nada animador, exceto pelos interessantes traços de Kubo Tite. A premissa de um adolescente irritado que vê espíritos e ganha poderes para lidar com o outro mundo lembra demasiado Yu Yu Hakusho para ser ignorado. As primeiras aventuras de Ichigo e Rukia lutando com hollows e mais hollows e se relacionando com os colegas de aula são pouco criativas e instigantes. Ok que ali são introduzidos elementos que depois serão aproveitados continuamente, como a explicação do que são os hollows, os shinigami, quincy, de como os humanos despertam seus poderes e que depois serão explicados como fullbringers, etc, etc. Os elementos são interessantes, mas a escrita das aventuras é entediante. Chad salvando passarinho, o lance de Inoue com o irmão morto, enfim, tudo é muito sem graça. Mesmo o momento envolvendo a história da morte da mãe de Ichigo e Grand Fisher é pouco empolgante. O humor da série, com os desenhos ruins de Rukia, Kon, Kanonji, os colegas ridículos de Ichigo, é muito fraco.

O início da série tem roteiro desprovido de originalidade e sequer é cativante. E para piorar, o protagonista é opaco, porque apenas reflete um estereótipo banal de adolescente irritado constantemente. Os colegas de Bleach a todo momento lembrando o quanto ele é rabugente piora a situação, porque inclusive faz questão de escancarar o que é óbvio. Enfim, se o leitor não desistir neste início, tem algo a ganhar. Talvez os primeiros capítulos sejam realmente um teste…

As coisas melhoram com a chegada dos shinigami para levarem Rukia embora à Soul Society. Ali temos a primeira tensão realmente relevante na série, pois pela primeira vez tem-se a sensação de que Ichigo corre perigo de vida e que as coisas estão saindo do controle. E mais importante, temos a primeira derrota de Ichigo, humilhado por Byakuya. O primeiro arco termina com um momento empolgante… e derrota.

E então temos o arco de Soul Society. Aqui as coisas mudam. A premissa é simples: operação de resgaste da princesa, um plot básico multimilenar. Mas o interessante está no fato de que nenhum dos personagens que vão ao resgaste possuem ligação tão profunda e genuína ao ponto de justificar quererem salvá-la. Chad, Inoue e Ishida eram amigos superficiais dela, não mais amigos do que são amigos dos outros colegas de classe. E mesmo Ichigo não parece nutrir por Rukia sentimento de amizade ou carinho maior do que sente pelos demais amigos. Dizer que eles estão se arriscando porque defendem a ideia de ‘amizade’ é muito superficial, pois pessoas defendem amigos, não a ‘amizade’ em abstrato. Por que, então, Ichigo se arrisca tanto?

Ignoremos pelo momento o plot de bastidores envolvendo Urahara, Aizen, etc. Foquemos nas ações dos protagonistas. Ichigo vai atrás de Rukia não porque ela é amiga, mas simplesmente por obrigação moral. Ichigo se sente obrigado moralmente a salvá-la porque ela o salvou antes logo no início da série, quando inclusive o tornou shinigami substituto. O que move Ichigo é um impulso moral, uma certa ideia de justiça.

E esta ideia pessoal de justiça se liga ao orgulho pessoal de Ichigo, de não aceitar ficar em débito com ninguém, o que já fica externalizado na história da relação com Chad contada em flashback. Por orgulho pessoal ele não se permite não devolver a Rukia o que ela fez por ele.

Não é a toa que o arco tem seu clímax no grande duelo com Byakuya. O arco é preparado com a humilhação imposta por Byakuya a Ichigo no mundo humano. O arco se desenvolve com interações entre os dois diretamente ou por meios de pessoas ligadas a eles, como Renji. E tem seu clímax na luta entre os dois, que escancara o como são diferentes e parecidos ao mesmo, mais parecidos do que diferentes, porque ambos agem na base de uma ideia de ação moral criada por eles mesmo.

Para Byakuya a irmão adotiva ser morte é a consequência lógica e justa das ações dela. É a justiça de Soul Society, e não cabe a ele questionar, mas tão somente acatar. É em nome do orgulho de ser representante de uma das quatro casas nobres que ele aceita dolorosamente aquele caminho. A realidade externa não importa,relevante é apenas agir conforme a própria noção moral de dever ordena.

Byakuya diz que Ichigo estava guerreando com a ideia de justiça de Soul Society. Isto é absurdo, Ichigo sequer tem educação suficiente para fazer críticas complexas desse jeito. Achar que Ichigo e seus raciocínios previsivéis e pouco refinados entenda alguma coisa de justiça, sistema judiciário e etc é esperar demais do sujeito… Ichigo contraria a justiça de Soul Society não porque discorde dela, mas porque ela quer matar Rukia, a mulher que o salvou, apenas isto. Ichigo não é jurista, não é filósofo, não é um revolucionário, nem mesmo um rebelde anti-sistema. Não é nada disso.

Ainda assim a noção de moral de Ichigo parece ser mais consistente que a de Byakuya, porque este, ao pensar que decidia moralmente, no fim estava apenas obedecend feito marionetes uma justiça falsa. O que ele achava ser a decisão de Soul Society era um teatro armado por Aizen. Ichigo ao menos agia sabendo que estava decidindo com base nos próprios caprichos pessoais. Já Byakuya, com todo o seu ar de nobreza e orgulho familiar, era um peão de um sistema falso, inexistente.

O discurso final de Aizen, antes de ser levado a Hueco Mundo, sintetiza o arco: por natureza não existem regras em Soul Society, no mundo humano, em lugar algum. O trono de ser mais poderoso está ausente. Não existe, na base, nenhuma moralidade. Tudo é convencional, tudo é capricho pessoal, e ele ao menos estava escancarando que agia tão-somente por capricho pessoal. Neste sentido qualquer discurso sobre justiça como algo perene, tal como o faz Byakuya, é sem sentido naquele universo, pois tudo se resume a ter poder para impor a própria lógica aos outros. Ichigo não provou que sua ideia de justiça era melhor que a de Byakuya, apenas que por ter mais poder pode fazê-la parecer ser assim. O arco de Soul Society parece escrito por alguém que segue ideias a la Trasímaco.

É interessante como também este arco se encerra de modo melancólico, com derrota, tal como o primeiro. Derrota no sentido de que Soul Society foi duplamente humilhada, primeiro porque inclusive capitães honoráveis e poderosos agiam feito marionetes, logo eles, incluindo o comandante Yamamoto, que deveriam ser o suprassumo de racionalidade militar estratégica. E depois porque parcialmente salvos por adolescentes humanos.

Este arco já tem vários dos defeitos crônicos de Bleach, como o péssimo ritmo do empoderamento de Bleach, que a toda hora vai se tornando monstruosamente mais forte, humilhando em velocidade de aprendizagem personagens que precisaram de séculos de treinamento. E quase sempre com soluções de treinamentos que aparecem aleatoriamente e pouco convencem o leitor.

No entanto brilham nas batalhas. As lutas de Ichigo com Renji, Zaraki e Byakuya são estupendas, assim como Ishida vs Mayuri, talvez o duelo mais instigante do arco. Zaraki contra Tousen é também interessantíssima. Bleach é battle shounen, e um battle shounen que tem excelentes batalhas já é meio caminho andado.

Para além das batalhas talvez o aspecto mais interessante de Bleach seja a sua estranha e problemática cosmologia. O universo de Bleach, dividido entre mundo dos humanos, Soul Society, Hueco Mundo e outros espaços é aberto a muitas reflexões e críticas. Mas no arco de Soul Society esta cosmologia é trazida de maneira criativa, instigante, porque faz uma sociedade espiritual parecer um outro mundo humano tão corrompido, superficial e sem rumo como o nosso. O nosso planeta tem história confusa, tem inúmeros problemas, mas se você acredita que exista algo mais além ‘dessa vida’ suponho que imagine que este ‘outro lado’ seja mais ordenado e qualificado que ‘este aqui’. Ora, se a vida é um mundo bizarro ao menos o ‘depois’ precisa ser em algum lugar estruturado inteligentemente, afinal é desse lugar que surge a lógica para ‘estruturar’ este aqui. Bleach joga tudo de cabeça para baixo, pois é como se, utilizando uma metáfora, o mundo inteligível fosse tão caótico como o sensível, em Platão. No fim das contas em Bleach toda a realidade é caótica, desprovida de sentido. Não importa se você é humano, hollow ou shinigami, você está preso em uma realidade complexa, caótica e aparentemente sem sentido à vista.

E esta cosmologia caótica de certo modo justifica o que foi falado anteriormente sobre ausência de uma noção de justiça como algo inerente ao mundo em Bleach. Naquele universo, sem pilares sólidos, tudo está a mercê da força.

De certo modo não é difícil nem surpreendente aceitar desgoverno no Estado, como em One Piece ou Naruto, ou até mesmo em instituições mais milenares e radicadas no místico como o Santuário em Saint Seiya, agora, Bleach supera tudo isto, porque faz o próprio ‘outro mundo’ ser desgovernado, caótico e um grande teatro. Soul Society é a realidade paralela que administra a tensão e transição entre a vida e a morte… e se esta mesma Soul Society é desgovernada, facilmente manipulada e cheia de problemas, o que esperar da própria realidade? No post sobre Akage no Anne comento sobre a famosa frase de que enquanto houver Deus ou qualquer força maior equiparada no céu tudo é aceitável na Terra, porque os problemas podem ser corrigidos com a expectativa de que existe algo estável e bom na realidade superior. Em Bleach mesmo esta realidade superior é frágil e depende da política e da força bruta para se manter. O caos de Soul Society faz o próprio mundo dos humanos parecer sem sentido.

O arco de Soul Society abre esta cosmologia bizarra e ao mesmo tempo, atraente. O problema é como o autor desenvolve nos arcos seguintes. O arco de Soul Society, pensado em si próprio, é uma pequena preciosidade de cosmologia caótica em Battle Shounen, tanto absurda como sedutora.

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