Evangelion e o gênero mecha

Recentemente assisti pela primeira vez os Rebuild de Neon Genesis Evangelion, e foi uma experiência surpreendente, pois há ali uma atmosfera bem diferente daquela da série clássica, menos tomada por melancolia e monólogos introspectivos em círculo. Não que isto seja uma crítica à série clássica, afinal também nestes aspectos estão o seu caótico charme. Bom, o fato é que depois de ver os Rebuild retornei para a série clássica e decidi escrever uma sequência de textos que abordem o universo de Evangelion. Muita coisa já foi dita, certamente pouquíssimos animes foram tão analisados. De todo modo vale o empenho dar também esta contribuição.

A sequência terá, em primeiro momento, três textos. A parte 1 (presente texto) foca nos primeiros 24 episódios da série clássica. A parte 2 lida apenas com os dois episódios finais. A parte 3 fala do The End of Evangelion. Depois a ideia é fazer textos sobre os Rebuild, mas ainda não me decidi sobre lógica e quantidade destes. Deixemos para mais adiante.

Muito já foi dito que Evangelion dificulta o acesso do espectador por causa das características de seu protagonista. De fato, Shinji não é alguém fácil com quem se possa estabelecer uma relação de empatia. As seguidas idas e vindas, vontades de desistir e retornos, crises melancólicas e comportamentos passivos distoam muito dos protagonistas mais genéricos de animes e mangás. Shinji não se apresenta como herói, e deixa claro que não quer ser um herói, desde o começo. Mesmo aqueles que o colocam para lutar (seu pai e toda a equipe da NERV) não parecem vê-lo como um herói, mas apenas como um garoto que por razões alheias às escolhas dele próprio são forçados a depositar confiança.

Shinji não se vende como jovem corajoso, determinado e nem alguém que busca fazer amizade com todos a qualquer custo. Dito isto, discordo que Shinji seja covarde ou preguiçoso, afinal, acompanhando a série do começo ao fim se nota claramente um avanço na sua forma de lidar com as situações de pressão. Shinji não é covarde, apenas tem consciência de não ser nenhum herói ou pessoa que ‘nasceu para pilotar mecha’, e diante disso luta para fazer o seu melhor, que num primeiro momento é apenas sobreviver, e depois permitir que também a humanidade sobreviva. Em certo passo da história passa a utilizar o protagonismo como piloto para tentar conquistar reconhecimento afetivo alheio.

Estas palavras sobre Shinji são importantes porque é a atitude dele que logo no primeiro episódio deixa claro que não estamos diante de uma narrativa mecha convencional. Temos ali um suposto robô gigante construído para enfrentar um monstro inimigo, dando tudo a entender que teremos uma clássica sequência de ‘monster of the week‘, tal como em tantas séries antigas, dos animes e mangás a la Mazinger ou Combattler V aos diversos exemplos de Super Sentai. Mas o foco dos dois episódios não está tanto no robô, e sim em Shinji e suas hesitações, medos e relação dolorida com o pai que recém reencontrara, o então chefe da NERV, Ikari Gendo.

Ao mostrar um mecha, Evangelion explicita que faz parte do gênero mecha, mas ao focar no drama de Shinji, já também estabelece que não será um mecha convencional, mas um mecha permeado de existencialismo e psicologismos.

Muito se diz que Evangelion é desconstrução do gênero mecha. Não entendo muito bem todo o oba oba que se faz em torno das tais ‘desconstruções’. Aliás, sequer entendo o que bem seja uma desconstrução. O que vejo em Evangelion é uma série que faz parte do gênero mecha, mas que introduz elementos inovadores que fazem evoluir as narrativas do gênero.

Ora, não é novidade para ninguém que Hideaki Anno é fã de clássicos como Mobile Suit Gundam, Space Runaway Ideon (essa série, em especial, tem muitos ecos em Evangelion) e até mesmo dos famosos tokusatsu. Anno cresceu assistindo séries mecha e séries de lutas entre monstros estranhos e poderosos, como Devilman. E basicamente tudo isto está em Evangelion, tanto os robôs gigantes como os monstros ameaçadores. Anno acrescenta a tudo isto um plot complexo repleto de simbolismos, dramas existenciais e episódios focados nas dificuldades de relacionamento dos personagens. Mas lembremos que mesmo isto não é total inovação, pois desde que surgira em meados da década de 60 os mecha vinham paulatinamente se tornando mais complexos e imersos no simbolismo e nas questões mais existenciais. Afinal, não é disso que se trata muito da saga de Amuro Ray? E mais ainda de Ideon? Ademais, o próprio Anno já vinha experimentado com este modelo em seu Gunbuster, que também não se resume a mechas lutando com monstros extraterrestres, mas cobre as dificuldades emocionais das protagonistas. Aliás, já ali está a preocupação com o reconhecimento afetivo alheio, tema recorrente em Eva.

Neste sentido não vejo crítica, mas uma evolução natural do gênero, que com o tempo vai deixando de ser apenas luta entre robôs gigantes ou robôs gigantes contra monstros para criar narrativas também centradas nas doras dos pilotos humanos. No entanto, lembremos, toda a complexa narrativa não pode fazer com que as lutas emocionantes deixem de existir, porque afinal, é disso que se trata, essencialmente, o gênero mecha. Se a preocupação for apenas existencialismo para que se preocupar em fazer design tão elaborado e criativo de robôs? E o design das unidades Eva, aliás, considero magníficos, uma mescla entre humanóides, robôs e demônios. A complexidade narrativa serve para tornar o universo ainda mais empolgante e emocionante, afinal as lutas épicas ganham novas proporções de intensidade quando além de serem bem feitas podem impactar uma história bem elaborada. Outro ponto é que se os mecha perdem protagonismo fica mais difícil vender os brinquedos…

Mas deixando claro, o que escrevi acima não considero que seja ausente em Evangelion. Não vejo em Eva desproporção entre narrativa centrada nos personagens e lutas de robôs gigantes. Para mim Eva faz isto com maestria, porque torna os ataques dos anjos ainda mais espetaculares quando você já sabe o estado emocional dos pilotos. O que falei no parágrafo anterior foi uma leve crítica a esta tendência de ver narrativas antigas de mecha como fracas só por não se centrarem demasiado nos pilotos.

Já ouvi também falarem que Evangelion é uma paródia ou crítica aos fãs de mecha. Sendo o próprio Anno um exemplo de fã de mecha isto seria entendido como autocrítica. Este ponto considero válido, mas acho que será mais fácil desenvolvê-lo no próximo texto, porque talvez mais que sobre fãs de mecha seja sobre fãs obsessivos em geral.

Evangelion continua sendo um anime do gênero mecha, com suas lutas empolgantes, com toda a preocupação em explicar a tecnologia por trás dos robôs e utiliza ainda elementos clássicos destas narrativas, como a conexão entre pais cientistas/desenvolvedores dos robôs e filhos pilotos dos próprios robôs. A própria trama da série clássica tem os episódios iniciais bastante focados nas lutas com os anjos e nas dificuldades emocionais dos personagens, e apenas mais adiante os tópicos simbólicos e esotéricos começam a ocupar mais importante na narrativa. Talvez os episódios que melhor retratem Evangelion como fiel à tradição mecha são aqueles logo após a introdução de Asuka, quando vencem alguns anjos em sequência com base em trabalho de equipe e treinamento para se aprimorarem como pilotos. Refiro-me a Gaghiel, Israfel, Sandalphon e Matarael.

Evangelion faz parte dos anime mecha e representa uma série de inovações importantes no gênero. A questão de introduzir trama mais envolta em existencialismo, como já apontado, não é seu grande trunfo. Até porque isto chega a ser questionável, afinal pensado desse modo seria um anime mecha misturado com outros gêneros. Pensando especificamente Evangelion como mecha ainda assim há novidades substanciais e todas elas são facilmente percebidas.

As lutas dos Evas com os anjos são espetaculares, algumas mais, outras menos, mas em geral exuberantes e emocionantes. Considero a batalha entre Unidade 01 e Sachiel um dos grandes momentos da história dos animes. Ali é tudo muito diferente. As Unidades Eva logo de cara surgem não como robôs metálicos gigantes que se locomovem de modo previsível, mas como gigantescos humanóides que se movem com fluidez e agilidade, em várias direções. As constantes trocas de enquadramento nos planos que mostram os Evas lutando e as expressões faciais de seus pilotos dá todo um dinamismo que amplifica os efeitos emocionais. Você não vê apenas robôs gigantes lutando com monstros, mas robôs se movendo com destreza, agilidade surpreendente, entremeados com o desespero, medo e quaisquer outros sentimentos que toquem seus pilotos. A autodestruição de Rei mais ao final, quando Shinji conversava com Kaji, é outro exemplo bombástico desta inovação, sem mencionar a épica cena de Asuka lutando com várias unidades simultaneamente no The End of Evangelion. É certo que já tínhamos animes mecha com lutas cada vez melhor animadas naqueles anos, mas Evangelion representa um salto considerável de qualidade. Lembremos que outra cena icônica de gigante se movendo, aquela de Nausicaä, também foi animada por Hideaki Anno.

Aliás, os Evas revelam influência nítida dos gigantes antigos de Nausicaä. Os Evas não são criações totalmente da humanidade atual deste planeta, mas um misto de conhecimento científico contemporâneo com informações e materiais de outras eras, tema que Anno já vinha utilizado habilmente em Nadia: Secret of the Blue Water. Isto cria todo um mistério sobre os Evas, amplificado pelo fato de desde os dois primeiros episódios ficar explícito que são armas biológicas, ao ponto de sangrarem efusivamente quando agredidas. Quanto mais a trama avança mais se intensifica o mistério em torno deles. Cenas igualmente estupendas como os combates com Leliel e Bardiel demonstram isto, porque em ambas a Unidade 01 derrota os inimigos agindo aparentemente por vontade própria, sem necessária ligação com as escolhas do piloto. A Unidade 01 abrindo Leliel de dentro para fora e deixando todos petrificados de medo, e ainda mais quando devora o inimigo na luta com Bardiel, surpreendendo inclusive a Dra. Ritsuko, são chocantes e poderosos momentos. Nesse aspecto Evangelion utiliza elementos de Nausicaä, Ideon e outros e leva a outro nível de qualidade.

As unidades Eva não são simples armas que o ser humano cria para defender o planeta, e na medida em que a trama avança mais os próprios funcionários da NERV começam a temer as armas que eles mesmo supostamente criaram e administram. Da mesma forma as unidades Eva não são temas de discussões pseudo-pacifistas, tratados como simples armas que podem trazer o fim do mundo. Mais do que isso passam a ser vistos como criaturas vivas misteriosas cuja origem, finalidade e extensão dos próprios poderes parece incapaz de ser determinado pela inteligência humana corrente.

A partir daqui o mecha não é mais simplesmente um robô pilotado, uma arma utilizada para atuar em guerras e defender o planeta contra inimigos. E o mecha pode inclusive transcender a discussão puramente bélica, passando a ser visto como objeto de debate em si próprio, isto é, o mecha como mistério a ser compreendido, e enquanto não entendido, temido continuamente. Amuro e Char pilotam seus mobile suits, mas nem sempre está claro se é Shinji e os demais que pilotam os Evas ou se por outro lado eles são meras fontes de energia para que o próprios Evas se movam e ajam por conta própria.


Paro por aqui, daria para divagar mais, mas penso que a ideia de mostrar Evangelion como inovação criativa dentro do gênero mecha foi alcançada. Isto não exclui outras análises, que serão feitas, mas penso que este elemento fático não pode ser ignorado. O próximo texto, baseado sobretudo nos polêmicos episódios 25 e 26 focarão os debates na narrativa existencialista que Anno empregou.

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