Acerca dos polêmicos episódios finais de Evangelion

No texto anterior afirmei que vejo Neon Genesis Evangelion como parte do gênero mecha. No entanto, é inegável que para além das maravilhosas batalhas não é tanto isto que fez a obra se tornar um sucesso estrondoso, e sim toda a confusão narrativa que se conduz até aos dois polêmicos episódios finais. Bom, falemos um pouco sobre isto.


Os dois episódios finais são criticados por diversas razões. A mais óbvia é utilizar um estilo de animação que transita entre o experimental e o desleixado, ao ponto de despertar discussões se o motivo seria problemas no cronograma e de orçamento… De minha parte não cheguei a considerar irritante o modo como foi produzido, mas tampouco causou grande impacto positivo. Em especial a parte final do ep. 26 é bem sem graça, seja como roteiro, seja como animação.

Outra crítica comum é pelo fato de os dois episódios finais abandonarem totalmente as sequências frenéticas de ação e batalhas e também não darem resposta conclusiva sobre os mistérios que foram se aglomerando ao longo da trama.

Enfim, os episódios finais focam exclusivamente em uma espécie de sessão terapêutica psicológica do Shinji, dando a entender que o mesmo processo estaria ocorrendo com todos os demais humanos. Hideaki Anno faz uma escolha estranha, focando os episódios finais totalmente na dimensão existencial e psicológica dos personagens, abandonando o que construíra até ali nos aspectos esotéricos e simbólicos e na trama empolgante de ação. É certo que vários episódios antes já tinham sido marcados por pouca ação e muito diálogo, por vezes monólogos, mas o fato é que os dois episódios finais levam isto a outra dimensão.

Penso que a ênfase no lado psicológico – e não naquele excessivamente simbolista – da trama ao final não é uma escolha estranha, nem mesmo surpreendente. Não estou afirmando que todo o simbolismo de fontes místicas e filosóficas que inundam a narrativa sejam inúteis ou meramente questões supérfluas. Já pensei deste modo, e se vasculharem este blog provavelmente encontrarão algum trecho meu aqui e acolá dando a entender isto. Hoje penso que não, afinal, se o autor se empenhou em inserir tantos símbolos, e muitos deles exigem ampla pesquisa, trabalho totalmente aleatório e inútil não deve ser. No entanto, resisto na ideia de que embora tenham suas funções, não são o cerne da narrativa, não são o que há de especial em Evangelion, e que Evangelion pode ser compreendido sem estes elementos. Sei que é afirmação arriscada, afinal não conheço profundamente aspectos da cabala, então se conhecesse talvez mudasse de ideia. Ainda assim, conhecendo a carreira de Anno como um todo, antes e depois da série clássica de Evangelion, nunca restou a sensação de que é no esoterismo ou simbolismo que está o foco de atenção dele. Parece muito mais que tudo isto é inserido depois, aos poucos, para abrilhantar, mas não que a obra tenha surgido de tais aspectos.

Explico melhor: se Evangelion for, essencialmente, um discurso sobre certas noções esotéricas, isto precisa ser demonstrado que é a partir deste suposto universo de símbolos esotéricos que nasce a trama. No entanto, tais aspectos começam sutis e apenas aos poucos vão ganhando maiores proporções. Acompanhando Evangelion tudo leva à ideia que a trama não nasce deste simbolismo, mas de questões mundanas muito mais triviais e, ainda assim, fundamentais para nossa realidade humana.

Sim, penso que é justamente nos conflitos psicológicos, nas melancolias, nos medos e ansiedades, nas contradições dos relacionamentos entre os personagens, que se situa Evangelion. A questão da busca por autonomia, reconhecimento e dificuldade na relação pais e filhos já tinha sido tocada em Nadia: Secret of the Blue Water. As rivalidades nas relações já apareceram em Gunbuster. Toda a melancolia de não se sentir parte do mundo surge de modo intenso no filme em live action Love & Pop, sobre o universo das kogals, e que já tinha recebido aceno meu no texto sobre Furuya Usamaru. E, além de tudo isto, já havia sido o foco do hilário e provocativo Otaku no Video, um dos pilares para se entender o pensamento que permeia as obras Gainax e dos seus estúdios derivados.

Em Otaku no Video, de 1991, temos dois episódios de OVA que intercalam história em animação com docufiction em live action. Na história animada temos um ‘otaku’ no esporte tênis sendo puxado a se envolver com otakus em animes, mangás, games, materiais militares e outros. Quanto mais ele se envolve, mais abandona a antiga vida, afinal quando era do clube de tênis tinha reconhecimento social, uma namorada que o admirava, etc. Mergulhado no mundo dos fãs de animes, é rejeitado pela namorada (ou quase isto) e, movido por esta raiva, decide se tornar o otaking, o rei dos otakus, criando uma empresa que o tornaria rico e poderoso no mundo otaku. A história se desenrola com ele ganhando cada vez mais poder até terminar partindo para fora do planeta Terra à procura do ‘planeta dos otakus’. Aliás, o final com uma Tóquio futura mergulhada no mar lembra tanto Nadia como a trama de Evangelion que logo surgiria. Dizem que o próprio Evangelion primeiro teria sido pensado como sequel a Nadia.

No decorrer da história há várias entrevistas fictícias em live action com personagens masculinos adultos ainda vivendo como otakus, sempre em tom de deboche. O estúdio admite que os personagens são, ao menos parcialmente, baseados na história dos fundadores da própria Gainax. Ou seja, há uma transição contínua entre animação e live action, fantasia e realidade, tal como se os docufiction fossem a análise e explicação do que ocorria na história animada. A história é permeada de referências e homenagens às séries clássicas de animes. Lá há cosplay de Char, de Lupin, menções a Macross e a tantas outras obras eternas. É praticamente uma apresentação do referencial teórico da formação de Anno e seus colegas fundadores da Gainax. Os otaku não se sentem reconhecidos pelo mundo, com dificuldades de estabelecer contato biológico direto com os outros, se reclusam em realidade paralela com personagens em 2D. Várias das entrevistas em docufiction tocam no assunto da vida (ou ausência dela) sexual dos entrevistados.

Enfim, não é difícil perceber que tudo isto é jogado em Evangelion. Lá está Shinji que tem medo de construir relações profundas e se machucar, no tal dilema do porco-espinho citado vira e mexe. Lá tem Asuka e sua necessidade de se exibir continuamente, seja como piloto de elite ou como sexualidade, como em sentimento de inferioridade a todo momento procurando compensação. Lá está Rei, praticamente uma boneca ou personagem 2D se tornando realidade. Em Otaku no Video eles fazem bonecos de personagens femininas para vender. Um outro otaku diz que para ele basta uma personagem de anime como interesse sexual e por aí vai. Desse modo chega a ser irônico que Rei tenha se tornado com Eva justamente um símbolo de erotização na cultura dos animes e mangás, tendo praticamente construído um estereótipo de personagem feminina que será replicada ao infinito desde então.

Os personagens de Otaku no Video sonham com um mundo imaginário onde possam viver de verdade as fantasias que veem nos animes. A vida cotidiana para eles é sofrida e entediante se comparada aos universos fantásticos de suas séries favoritas. Em Evangelion temos o inverso, com Shinji vivendo uma história fantástica e épica, mas querendo uma vida cotidiana e comum. Não sem razão há aquele momento (no decorrer do ep. 26) em que reconstrói um universo no qual todo mundo vive feito pessoas comuns… Neste ponto o discurso de Anno é certamente uma crítica ao uso excessivamente escapista das séries animadas. Há uma constante recusa ao amadurecimento.

Os personagens adultos de Evangelion também não são diferentes, todos parecem ser frágeis emocionalmente por não terem aprendido a lidar nem com si mesmos nem com os demais. Gendo e sua procura pela esposa por meio de um intrincado jogo contra a SEELE parece ser o ápice disso.

Em Rebuild esta mensagem se torna ainda mais explícita, com os pilotos de Eva continuando com os mesmos corpos de adolescentes para sempre. Basicamente cada personagem fica preso na época colegial, e mesmo quando ingressa no mundo do trabalho, mesmo quando se torna uma liderança na sociedade, continua sendo, por dentro, imaturo, frágil. É provável que tudo isto tenha sido influenciado fortemente pelo próprio processo terapêutico que Anno enfrentou por quatro anos após lançar Nadia. A sensação de terapia e análise permeia vários e vários momentos de Evangelion.

É preciso ter um cuidado: por mais que estejamos falando sobre otakus de animes em geral, penso que a temática de Evangelion é mais universal, penso que Anno está falando não apenas dos otakus, mas do Japão de sua época como um todo e, por que não, da própria humanidade, em especial das gerações daquela época e seguintes, que suponho, envolvem a minha e dos leitores deste blog. De fato vivemos época em que temos dificuldade de construir relações duradouras e sólidas, porque há o constante medo de se machucar no processo, de perder o amor, o afeto de alguém. A rejeição que o protagonista de Otaku no Video sofre o faz querer se tornar o otaking. Nesse sentido ao menos usou para implementar algum projeto pessoal. Mas muitas pessoas, na mesma situação, não reagem dessa forma.

Muitos falam que Evangelion trata sobre solidão, sobre medo de solidão e de relações. Certamente passa por isto, mas vai além. Há um argumento que surge mais de uma vez na trama, que é o de que não existe ‘apenas um Eu’, mas um Eu dentro de mim e um Eu meu em você. Existe o Shinji no Shinji, mas existe a ideia de Shinji em Asuka, o Shinji em Misato e por aí vai. O Shinji que é pensado pelo próprio Shinji é o mesmo Shinji que existe na mente de Asuka? Para Asuka o Shinji deveria se comportar de um certo modo, isto é, ser menos passsivo, ser mais direto, autônomo, menos frágil, mas este Shinji que ela desenhou para si é o Shinji que existe dentro do Shinji? E todos os outros Shinjis que existem nos demais personagens?

A impressão é que existe um vazio entre eu e você que é, provavelmente, intransponível. Por mais que possamos dialogar, talvez exista um vazio incomunicável, exista um ponto em que eu e você não possamos ter certeza de estarmos falando da mesma coisa. Se Shinji e Asuka conversarem sobre Shinji estarão a conversar sobre a mesma coisa? As relações interpessoais em Evangelion porque basicamente cada personagem tem seu hipotético mundo imaginário perfeito, no qual todos os outros se comportariam tal como ele gostaria. No mundo hipotético de Asuka o Shinji teria mais atitude, por exemplo. Mas isto é sinal de pouco amadurecimento existencial, pois o processo de enfrentamento das experiências cotidianas ensina justamente o contrário, de que as pessoas e situações raramente são como cada um gostaria que fosse. Todas estas reflexões não são profundas, são divagações bastante superficiais, questionamentos muito iniciantes em qualquer debate sobre psicologia. Mas isto não retira o valor de tais reflexões, pois o objetivo de Anno é justamente evidenciar a falta de amadurecimento de todos os personagens, crianças ou adultos.

Pode-se avançar nas reflexões, pois o modo como Anno traz este debate abre possibilidades de análises filosóficas muito interessantes, acerca da possibilidade ou não de uma real interação entre duas pessoas. Talvez, no fundo, cada um viva, de fato, em um próprio mundo. Ainda assim, isto não retira o fato de que podemos nos relacionar muito melhor como seres humanos. Talvez a comunicação completa seja impossível, mas certamente ela pode ser muito melhor do que aquela estabelecida entre os personagens.

O final da série clássica considero insatisfatório, porque basicamente propõe que com algum autoconhecimento e terapia o indivíduo começa a se dar conta de que os outros não querem o pior dele, que os outros não são inimigos nem pessoas que apenas querem trai-lo. O momento de todo mundo parabenizando Shinji chega a ser constrangedor. Além disso, há aquele momento em que Shinji reconstrói um mundo possível com uma outra Asuka, uma outra Rei, com seus pais vivos, e uma vida normal de escola… Aqui aparentemente volta a crítica aos otakus. Um otaku muitas vezes é alguém que vive o mundo normal e sonha em se tornar um piloto mecha, uma garota com poderes mágicos, e por aí vai. Shinji é um piloto mecha e queria uma vida normal. Então ser feliz é apenas viver uma existência normal? O personagem que melhor sintetiza isto é o Kensuke Aida, porque fissurado por artigos militares era o que mais queria ser escolhido para pilotar um Eva, mas sempre preterido. Alguns são pilotos e querem vida normal, outros têm vida normal e querem ser pilotos. E no fim todos são infelizes.
Digo que o final é insatisfatório porque não responde, não diz afinal qual era o problema de Shinji e como poderia sair dele, apenas sugere que cada um pode se conhecer e reconstruir a própria realidade. Quanto a isto, ok, mas depois de tantos e tantos episódios mergulhados em reflexões existencialistas e dois episódios finais dedicados exclusivamente a isto é de se esperar algo mais…

Com isto não estou dizendo que os episódios finais não têm seu valor. No entanto, são pobres se comparados à complexa trama conduzida até ali, e também se comparados às emocionantes batalhas com os anjos. Durante 24 episódios Evangelion produz uma estranha dança entre ações frenéticas de mecha e monstros com mergulhos melancólicos no existencial cotidiano, e esta dança dava o tom, dava a sensação de se estar vendo algo diferente e especial. Os episódios finais não estão à altura da série, mas não são inúteis, porque servem ao menos para evidenciar que, ao fim de tudo, era de psicologismo e sociologismo de uma época que Anno queria falar.

A série clássica continua sendo uma das minhas favoritas. Foi impactante na primeira vez que vi e o é ainda hoje revendo. Repito o que falei em outro texto, considero a série clássica e os Rebuild ambos excelentes, e cada um com seus méritos próprios. Toda a melancolia, a sensação permanente de angústia beirado o desespero, a erotização que vai do psicologismo ao fanservice (os plug suits dos pilotos são surpreendentes enquanto design), toda esta choradeira, dor, medo e etc, tem seu charme, faz provocação. Não importa quantas vezes você assista a série clássica, nunca sai de lá indiferente. E por isto merece ser revisitada continuamente. Além de tudo Evangelion é uma obra que representa impacto sociológico, que muda os rumos não somente de uma indústria, mas também de como as pessoas, ao menos no contexto japonês, se relacionam com a cultura. O fenômeno sociológico dos efeitos gerados a partir de Evangelion talvez sejam outro tema interessante a ser explorado. Mas isto fica, quem sabe, para outra oportunidade.

O próximo texto tratará especificamente do The End of Evangelion e sua relação com a série clássica.

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