Death Note e o impacto do vazio

Na época que o All Fiction era mais ativo eu não tinha lido nem visto Death Note. Fui assistir apenas alguns anos depois, e revi recentemente. Bom, Death Note, tanta coisa já foi escrita e dita sobre esta obra, talvez poucas tenham sido tão comentadas… Ainda assim, talvez valha pincelar qualquer coisa.

Naqueles anos Death Note tinha sua legião de fãs e também de seus detratores. Alguns achavam uma série revolucionária, com sua agressividade, violência e plot cinzento na questão moral. Outros a rotulavam de ‘pseudo-intelectual’, que esbanjava ar de profundidade, sem ter muito o que oferecer. Talvez se eu tivesse conhecido naqueles anos estaria no segundo grupo.

Quase sempre a realidade não se localiza nessas análises extremistas, e mais uma vez parece ser o caso. Death Note, de fato, não é a revolução que muitos pensam, mas inegavelmente tem seu impacto não apenas como obra, mas como expansão de mercado, afinal ajudou a disseminar a cultura dos mangás em todo o planeta. Muitas pessoas que não são adeptas de mangás e animes conhecem e apreciam Death Note, adoram L e xingam a segunda parte da história. De certo modo, é um caso não tão comum de obra que fura consideravelmente a bolha otaku. Daí um mérito inegável.

Antes de mais nada não se pode ignorar que Death Note foi serializado na Weekly Shounen Jump, e pensando nesta perspectiva a história é bastante surpreendente, porque foge dos padrões típicos da revista, tantas vezes comentado e até mesmo criticado inclusive neste blog, seja por mim ou por outros redatores. Em Death Note a amizade, a coragem, a determinação e o trabalho em equipe até aparecem aqui e acolá como valores celebrados, mas não são determinantes. Não é uma série sobre jovens esforçados. E não é sequer uma série sobre jovens bondosos que querem salvar seus amigos e também a humanidade. Kira e L não são simplesmente empenhados, mas verdadeiros talentos, gênios. E tampouco são amigáveis defensores da justiça, não ao menos daquele sentido mais convencional e banal de justiça como ‘fazer o bem’, seja lá o que isto signifique…

L parece ser simplesmente obsessivo por aquilo que faz, porque é espetacularmente bom naquilo que faz. L não está tentando salvar o planeta, nem mesmo ser o justiceiro que prende o bandido. L está em disputa intelectual com Kira.

E Light/Kira? Bom, este certamente não representa qualquer noção de justiça típica dos battle shounen.

Death Note entra no terreno da moralidade cinzenta. O leitor ou espectador não tem um chão firme moral para se apoiar. Ironicamente Light representa sim uma noção de justiça, até bastante apoiada em certos círculos contemporâneos, aquela de que todo criminoso deve ser punido impiedosamente, e que desconfia de todo o sistema judiciário e policial, bem como da defesa ancorada em direitos humanos, como se tudo isto fosse apenas um complexo de engrenagens para proteger os criminosos. Não à toa Kira tem apoio popular massivo na trama, afinal provocou a redução considerável do índice de criminalidade no planeta. Ele tenta se tornar – e talvez tenha conseguido – uma figura divina que pune qualquer pessoa a partir do nada. Você pode estar nas ruas, no trabalho, em casa, vagabundeando na internet, em qualquer lugar, e do nada pode ser punido pela justiça de Kira. Não é de se admirar que algo assim realmente arrebanharia seguidores na vida real. O âncora de TV, a jornalista e o promotor de justiça que apoiam freneticamente Kira são certamente figuras facilmente localizadas aqui e ali no cotidiano. O mal deve ser punido, e o meio utilizado, ainda que extremamente violento e opressor, não é considerado um mal em si.

Convenhamos que é uma ideia bastante banal de justiça, mas isto não pode negar a realidade de ser uma ideia banal que tem apelo popular, que exerce influência na sociedade.

Esta moralidade mais cinzenta é certamente o grande trunfo de Death Note, e realmente representou uma mudança de paradigmas importante em obras mais populares. Depois veio Code Geass, e mesmo estes battle shounen contemporâneos, como Kimetsu no Yaiba, não sei se existiriam dessa forma sem Death Note. Aliás, eu apenas decidi rever Death Note porque recentemente resolvi assistir Breaking Bad, e enquanto via e ouvia os celebrados comentários sobre herói misturado com vilão no personagem do Heisenberg não pude deixar de notar que já Death Note fazia aquilo, e com mais qualidade.

Death Note começa a preparar o terreno para uma tendência de obras que são marcadas por uma forte melancolia e desperança no ser humano. Afinal quem tenta mudar o mundo é Light, mas ele mesmo cria uma versão ainda mais decadente da sociedade. No fim, não há evolução, não há aprimoramento social algum, a derrota de Light representa apenas o retorno do status quo, no sentido de ‘é ruim, mas menos ruim que o que Kira procurava’. Existe uma melancolia muito profunda aqui, porque sinaliza que a sociedade é desconfortável, mas ‘é melhor tentar não mexer porque pode piorar ainda mais…

É o triunfo do niilismo em sua acepção melancólica, a ausência de sentido no mundo e na existência humana. Não existe justiça verdadeira, porque o que há é apenas a vontade do mais forte do momento, seja o Estado ou um personagem com poder sobrenatural como Kira. É a vingança de Trasímaco contra Sócrates. Sendo assim, concepções morais caem todas. L, Near e Mello não são heróis nem salvadores da humanidades, mas detetives que prendem um criminoso, nada mais e nada menos do que isso.

Em Death Note reina o vazio, a ausência de sentido para qualquer coisa. o total e poderoso tédio. É o tédio do mundo opaco e sem graça dos shinigami, é o tédio que move Ryuk, é o tédio que move Light e L, é o tédio brilhantemente expresso no discurso final de Ryuk antes de pôr fim à brincadeira de Light. Aquele discurso é soberbo, porque sintetiza em poucas palavras todo o sentido e espírito de Death Note: jovens brilhantes e geniais entediados, tentando encontrar um sentido para fazer qualquer coisa.

E neste aspecto há de se louvar a coragem da obra, que não oferece resposta pronta e esperançosa. Death Note parte do tédio, avança no desespero e no caos, e se conclui no vazio. O próprio valor da humanidade é posto em discussão, afinal quando com amnésia não é que Light tenha deixado de ser um Kira em potencial… Não é o caderno que transforma Light em Kira, o caderno é apenas o instrumento ocasional que facilita a exterorização da agressividade. Mesmo os demais personagens tampouco podem ser vistos como solução, porque o pai de Light, a equipe de investigação, são todos pálidos, quase inúteis na trama, meros coadjuvantes que apenas existem à mercê das decisões daqueles que realmente possuem o poder.

Tudo isto está em Death Note, que repito, é uma obra serializada na Weekly Shounen Jump, e também um sucesso comercial mundial.

Obs 1: outro aspecto que eu aprecio muito é a própria questão do funcionamento do caderno e sua relação com nomes. A ideia de nome representar a alma ou mesmo a vida de alguém é uma discussão muito complexa e intrigante, presente em tantos outros mangás, como Natsume Yuujinchou ou mesmo Noragami, mas também em mitologias e tradições muito antigas. É algo que merece discussão específica em outro momento.

Obs 2: outros posts do All Fiction sobre temáticas coligadas: https://allfiction01.wordpress.com/2014/11/01/joking-death/ (Erequito), https://allfiction01.wordpress.com/2012/11/15/bakuman-e-a-jump/ (Erequito), https://allfiction01.wordpress.com/2012/11/25/bakuman-e-o-sistema-de-questionarios-da-jump-parte-ii/ (Erequito), https://allfiction01.wordpress.com/2013/02/03/battleshounenlizacao/ (Erequito). Sim, tudo do bom Erequito.

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