Aquele Pouquinho Mais

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Ou “Como Battle Shounen são sobre batalhas, mas não apenas sobre batalhas.”

Eu tinha — ou mais precisamente queria ter — uma visão simplista sobre o que fazia uma battle shounen ser bom ou ruim. Nessa visão, tudo se resumia a batalhas. Afinal, é o que todo battle shounen precisa ter (tá no nome do gênero). Sendo assim, analisando por esse ponto de vista, se as batalhas são boas, o mangá (ou anime) é bom. Se não forem, é ruim. Ponto final; fim da história. Entretanto, mais recentemente ando acrescentando mais nuance a essa abordagem, pois, ainda que eu não queira admitir, é preciso aceitar que nenhum bom Battle shounen se deixa analisar tão simplisticamente; pelo contrário, até algo como Dragon Ball que, supostamente, é só luta atrás de luta (e, mesmo assim, é O parâmetro do que constitui um bom shounen de batalha) possui detalhes que deixam qualquer análise mais complicada (e que dão mais trabalho a qualquer crítico em potencial).

A raiz do problema está no fato de que não basta que a luta seja boa por si só (que seja bem desenhada/animada, que tenha poderes e movimentos legais sendo usados, etc) mas ela precisa estar em um contexto em que esteja justificada e em que os personagens estejam bem motivados. Não basta possuir socos e laseres fuderosos, mas, por trás deles, precisam existir emoções fortes e motivações bem estabelicas. Até mesmo Goku, um auto-declarado fanático por lutas, precisa saber por que está lutando de vez em quando. Vamos aos exemplos. Abaixo abordo títulos recentes (e não tão recentes) que mostram por que esse contexto (esse pouquinho mais) importa e como as lutas parecem vazias e sem sentido que essa parte extra não é bem realizada.

Bleach

Não é controverso dizer que a melhor saga de Bleach é a saga da Soul Society. Logo, uma pergunta se faz relevante: O que Soul Society faz de diferente que as demais sagas não fazem ou fracassam em tentar fazer? Essa pergunta se torna ainda mais capciosa quando nós percebemos que existem similaridades notáveis entre Hueco Mundo e Soul Society. Por exemplo, a motivação por trás da invasão de Ichigo e seus amigos à um mundo estranho e hostil é a mesma: salvar uma amiga (ainda que não seja a mesma amiga). Então, se o principais objetivos da saga são os mesmos, por que Hueco Mundo é “meh” enquanto que Soul Society é tão celebrada? Parte da resposta já está na própria introdução da pergunta: elas são a mesma coisa. Damsel in Distress é um trope que não irrita apenas feministas, mas me irrita porque já foi explorado centenas de vezes e Bleach abusa testa sua sorte ao explorar o clichê duas vezes seguidas e de maneiras tão sem imaginação. Resumindo essa opinião numa frase: o mesmo truque não funciona duas vezes.

Entretanto, se fosse apenas isso, essa resposta daria a entender que se fôssemos capazes de mudar a ordem de publicação das sagas, seria o suficiente para inverter a opinião dos leitores. Nesse mundo hipotético, Hueco Mundo seria a adorada e Soul Society seria a desprezada por copiar a anterior. Eu defendo, todavia, que a ordem não é tudo. Hueco Mundo, fundamentalmente, não é a mesma coisa que Soul Society, é, na verdade, bem menos. Listo algumas coisas que existem em SS e que não tem correspondente em Hueco Mundo:

1) Soul Society é um mundo muito mais interessante que o Hueco Mundo. Isso vale para vários aspectos, o primeiro é uma sociedade completa e sofisticada, o segundo é um deserto com prédios brancos (dizem os boatos que é para economizar tinta). Porém, além da localidade e do cenário, há outras características contrastantes. O que há entre Ichigo e o salvamento de Rukia é toda uma burocracia militar de proporções colossais. E, dentro dessa organização, há personalidades marcantes, como por exemplo, a maioria dos capitães. Cada um deles possui um passado ou um jeito de ser que é cativante. Zaraki e sua agressividade é, talvez, o mais proeminente. Mayuri é outro personagem icônico com sua obsessão científica. Além disso, cada divisão possui algum traço bem definido; coisa que dá mais detalhamento e personalidade a cada parte da organização. Faz parecê-la mais viva e mais interessante aos leitores. E, na sua jornada, Ichigo vai ter que passar (e passa) por tudo isso até chegar a Rukia. Isso é hype.

2)Byakuya e Rukia carregam consigo um dilema que não encontra paralelo em Hueco: Dever vs Família. Esse dilema enche de emoção o combate final entre Ichigo e Byakuya. O primeiro que não se importa com nada a não ser sua amiga, o segundo que tem dúvidas internamente, mas as esconde embaixo de um semblante severo. Quando Ichigo vence, não é apenas Byakuya que cai, mas toda a lógica que existia por trás da sua atitude. Assim sendo, Ichigo não vence apenas uma luta, derrota toda uma filosofia pessoal mostrando que ela não faz sentido algum. Não há nada semelhante em Hueco Mundo.

One Piece

One Piece é, na minha opinião, o mangá de batalha que melhor dominou esse aspecto “extra-batalha” que justamente estou tentando enfatizar. Ele é o rei de infundir emoções poderosas e contextos significativos em suas batalhas. Faz tão bem isso que são justamente esses momentos que ficam marcados na memória dos leitores e não tanto as batalhas em si. Exemplo disso: todo mundo lembra da cena em que Luffy coloca seu chapéu na cabeça de Nami. Pouca gente lembra como Luffy venceu a luta contra Arlong que se seguiu a esse momento, mas o chapéu de palha na jovem me meio a lágrimas é inesquecível.

Eu me perderia tentando citar todos os momentos exemplares em que One Piece faz isso, mas citarei alguns anyway mais destacados. Luffy luta a batalha final no arco de Alabasta não só porque Crocodile é um vilão malvado, mas por causa de tudo que ele fez de mal a cidade e aos amigos de Luffy. Ele está irado enquanto luta e é uma ira convincente que o leitor acaba por sentir um pouco também, porque as motivações de Luffy estão claríssimas; fruto de um desenvolvimento anterior muito bem feito que faz tudo que Luffy sente e faz ser razoável. Luffy também desafia sem hesitações o poder do governo mundial, e isso dá ideia de quão forte é a sua lealdade ao seus amigos e de como nada poderá se colocar entre ele e eles. Dressrosa, nesses aspectos, é muito semelhante à Alabasta. Ainda preciso digerir a saga mais recente para dar uma opinião mais confiante, mas me parece que Dressrosa é mais complexa. Isso trás coisas boas e ruins: há mais sofisticação, mais detalhes a cidade e aos seus dramas e mais consequências para o enredo como um todo, mas, ao mesmo tempo, é mais difícil de seguir com tantas tramas paralelas e tal complicação tira um pouco do conteúdo emocional que costuma ser mais forte em situações mais simples e contundentes.

Naruto

Naruto, por sua vez, também possui motivações bem estabelecidas. A primeira fase (chamada de Naruto clássico) revela simultaneamente o mundo em que se passa a história e seus detalhes mais interessantes e desenvolve o drama pessoal de Naruto, um jovem ninja que busca tornar-se mais forte e mostrar o seu valor para sua comunidade. Ele é um exemplo de superação de preconceitos através de trabalho duro e desenvolvimento do seu potencial. O momento em que ele vence Neji no exame chunin e em que finalmente prova sua força para a audiência da vila é para mim um dos momentos mais memoráveis do mangá. É a hora culminante de uma batalha acirrada entre os dois ninjas, onde Naruto não só triunfa na competição, mas também atinge parte do seu objetivo que perseguia desde o começo da série.

Mais tarde, o enredo continua a girar nos dramas pessoais dos personagens (sobretudo Sasuke para o desgosto de muitos leitores) e, mais a frente, lida com questões mais universais como o “ciclo de ódio”. Todo esse contexto dá importância às lutas que, na maioria das vezes, são resultados desses dramas, ao mesmo tempo que seus resultados criam consequências para eles. Quando Naruto vence seus inimigos mais ao final do mangá, ele não está apenas descendo o cacete, ele está provando certos pontos morais, de como o mundo deve ser, de como líderes devem se portar, etc.

Dragon Ball

Surpreendemente, até Dragon Ball beneficia-se desses momentos e dessas ideias fora de batalhas, mas que acabam por validá-las. E umas das principais diferenças entre Dragon Ball Z e Dragon Ball Super (o recente) é que esses momentos emocionais estão presentes no primeiro, mas são quase inexistentes no segundo. No meio da saga do Ceu, Kuririn se vê no meio de um seríssimo dilema. Bulma constrói pra ele um dispositivo que é capaz de destruir os androides. Apertando o botão do controle que recebeu, eles se auto-destruirão e isso impedirá que Cell os absorva e atinja sua forma perfeita (tornando-se praticamente invencível). O problema é que Kuririn gosta da Androide Nº 18. Essa situação e esse sentimento dele adicionam muita coisa à luta que está acontecendo simultaneamente. Primeiro, o próprio Kuririn, por um momento, deixa de ser um inútil saco de pancadas cômico, e é colocado numa posição crucial em que sua decisão pode mudar tudo. Segundo, A Androide nº 18 é “humanizada”. Ela deixa de ser uma vilã e passa a se tornar uma possível vítima do Cell. Isso não anula seu passado destrutivo, mas não deixa de complicar a situação ainda mais. Enqaunto Kuririn se decide, a luta continua. Nela, há outra situação delicada. Trunk (pensa que) é mais forte que o pai. Ele poderia vencer Cell num instante com o poder que adquiriu no seu treinamento, mas no seu caminho há o orgulho do seu pai, Vegeta, que quer vencer Cell em sua forma mais poderosa e que pretende cooperar com ele deixando-o absorver Nº18. Isso é extremamente arriscado, mas Trunks não sabe o que fazer. Ele quer agradar o seu pai, mas isso pode levar a destruição da terra.

Na luta final da saga, Goku luta conta Cell, mas sua maior esperança é que Gohan “steps up” e seja ele quem venca Cell mostrando-se digno e capaz de proteger a Terra, caso Goku morra. Com muito esforço e abuso por parte de Cell, Gohan finalmente libera os seus poderes. A luta, todavia, complica-se quando Cell absorve os poderes de Goku. Ele só é derrotado com um Kamehameha que transcende mundos, visto que Gohan precisa da ajuda da alma do seu pai para ser capaz de derrotar Cell.

O próprio Super Sayajin é exemplo da importância desses elementos fora da luta. Ele não é um poder que é obtido através de treino, mas só é liberado através de uma situação emocional crucial. No caso de Goku, a morte de um amigo. Freeza é um vilão unidimensional, mas mesmo essa simplicidade não impede que ele tenha uma interação significativa com Goku. O sayajin tenta fazer que ele desista e vá embora depois de perceber que o poder do SSJ é superior a qualquer coisa que Freeza tenha em si. Isso destroi seu orgulho e, no seu desespero, faz com que tente matar Goku com a própria energia que o sayajin lhe deu. Esses conflitos de objetivos e personalidades enriquecem essas batalhas de uma maneira que golpes e e superpoderes pirotécnicos não conseguem.

Dragon Ball Super é escasso desses momentos (pelo até onde eu assiti). Parece que Dragon Ball GT foi removido da lore, visto que não há referência neles a eventos de Dragon Ball Super; entretanto, ainda que esse agrade mais que aquele; aquele, ao menos, tentava algo diferente que em espírito era semelhante ao que o original fazia. DBSuper parece ser basicamente fan service. Existe para mostrar esses personagens icônicos lutando mais uma vez, com poderes novos e coloridos, mas não tem esses momentos, esses detalhes, que enriqueceram e deram sentido às lutas do Dragon Ball antigo. Infelizmente, poucos se lembram deles, quando, na verdade, eles significaram muito.

Obs: Majin Boo, na minha opinião, é uma saga pobre nesses aspectos que estou discutindo. Não é a toa que uma das sagas menos relembradas pelos fãs. Infelizmente, DBSuper parece cometer os mesmos erros. Luta atrás de luta, superpoder atrás de superpoder, mas muito pouco sobre motivações e emoções.

Conclusão

O que faz um battle shounen ser um battle shounen são as lutas. Esses momentos que eu indiquei os enriquecem, tornam-os melhores, mas eles por si só, não fariam um bom mangá. As lutas ainda são os momentos que carregam os clímaxes das sagas. É onde a tensão é mais alta e os perigos são mais ameaçadores. Contudo, esses perigos e essa tensão só existem se antes, no “set up” dessas lutas, existir desenvolvimento dos personagens, do mundo em que eles vivem, das suas motivações. Eu sempre tive uma cisma com Fairy Tail e a principal razão talvez seja essa. Essas motivações até existem, mas parecem ser uma paródia do que acontece em One Piece por exemplo. O título não os valoriza da mesma maneira; de jeito que parece que qualquer momento extra-batalha é apenas uma desculpa para batalhar.

Contudo, se não houver batalhas não é battle shounen. Até acho que muito setting up, muito lero-lero pode atrapalhar a ação. A sabedoria comum diz que nada em demasia é bom, mas, mesmo assim, não me vem a cabeça nenhum exemplo desse erro. No fim, nenhuma batalha não faria um mangá ser ruim, ele apenas viraria um drama ou um romance.

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3 respostas para Aquele Pouquinho Mais

  1. JeffLm disse:

    Nossa…Não entendo que dom você tem… Seus textos me fazem crescer mentalmente, adoro ver novos posts nesse blog. Já vi vários reviews seus que, mesmo se for um anime que nunca pensei em olhar, eu leio só para ouvir sua crítica. Sua crítica é uma junção de conhecimentos de anime que eu sinto curiosidade. Boa sorte com seu blog.

    Falando sobre sua crítica. É verdadeiro o que você diz, se o valor da motivação do personagem para trilhar seu caminho e chegar ao sucesso for baixa para o espectador, acaba perdendo a emoção.Mas se tiver muita motivação e pouca luta, fica chato. Por exemplo, na terceira temporada de Haikyu!! ( Sem spoilers), achei a batalha em termos de ação e 3D muito boas. Mas…Acredito que poderia ter uma motivação maior para os personagens principais vencerem o time adversário. Mas como o “mundo” deste anime( Mundo do Vôlei ) é limitado a ter objetivos muito maiores, aceito isto e continuo a olhar o anime. Mas perde um pouco a emoção da batalha. Pra falar a verdade, ando perdendo a “emoção” para as batalhas shounen que olho, sinto como se faltasse motivações pra qualquer luta. Será que fiquei crítico demais para os Shounen? Sei lá. Por isto estou preferindo ver animes de drama.

  2. Sinto falta de vocês da allfiction enriquecendo algumas discussões do fórum. Voltem a ativa aí!

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