Joking Death

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Eu rio na cara do perigo.

[Esse texto contém spoilers de: Epopéia de Gilgamesh, Ilíada, One Piece, Rei Leão, Tengen Toppa Gurren Lagann. Entretanto, não se acanhe se não leu Gilgamesh ou a Ilíada. Os antigos não eram tão preciosistas com a apresentação das suas histórias. Pouquíssimas pessoas apreciaram essas epopéias sem saber antecipadamente que certas coisas iriam acontecer. Obsessão com spoilers é uma mariquice atual. Mesquinhez nossa ao dar uma importância desproporcional ao entretenimento advindo da primeira leitura de uma obra.]

Poetas cantaram, desde sempre, o seu fascínio pela morte. Para muitos deles, era a única coisa inevitável e definitiva nas suas vidas. Uma certeza inabalável dentro de uma vida efêmera e sem sentido. Nossas vidas estão cheias de finais porcos, ou de episódios que parecem conclusões, mas que não o são. Muitas vezes, o que se supõe acabado, volta para encher o saco. É como se fossem ecos de coisas, que, às vezes, até se deseja que terminassem de uma vez. A morte é o único fim inquestionável. O capítulo final na vida de um indivíduo.

É óbvio que pessoas deixam suas marcas durante as suas existência terrenas, e que essas podem se estender para além da sua morte na vida daqueles com quem conviviam. Algumas pessoas são lembradas para sempre o que implica que, em certo sentido da palavra, elas se tornaram imortais. Entretanto, do ponto de vista subjetivo, que é o que importa para muitas pessoas, a morte é o fim para elas mesmas.

Religiões oferecem outro caminho. Algumas afirmam que existe uma vida após a morte. Outras afirmam que se reencarna em outro ser humano prestes a nascer e se vive outra vida. Contudo, mesmo nesses casos, a morte ainda é um momento crítico.  É uma passagem única e incomparável com qualquer outra na vida.

Tal status da morte, esta austeridade e este respeito que não encontra igual, é o que permite que ela cause impacto no espectador quando surge em uma obra. Não é incomum que a morte de uma pessoa (ou de várias) se encontre em meio a clímaxes de histórias. Muitas vezes é a própria a morte que transforma o momento na obra em um clímax.

Exemplos de mortes memoráveis existem aos montes. A morte de Kamina em Tegen Toppa Gurren Lagann. A morte do Barba Branca em One Piece. A morte de Mufasa em Rei Leão. A morte de Pátroclo na Ilíada. A morte de Enkidu na Epopéia de Gilgamesh. Note como todos esses acontecimentos são poderosos, como são os spoilers mais brutais que podem ser dados das respectivas obras. Esse é o poder da morte.

E como diz o ditado moderno: “Com grandes poderes, vem grandes responsabilidades.” A morte em um obra de ficção não é de verdade. É tão ficção quanto. É apenas uma sugestão, uma sombra, da coisa real. Nenhuma morte de um personagem vai lhe causar tanto impacto quanto a morte de um ente querido. É tarefa do autor fazer o possível para que a morte em sua obra, caso aconteça, seja comparável com o que ocorre no mundo real. As leis do universo (ou Deus, whatever) se encarregam de fazer isso no mundo real. A existência de um ser humano é única, complexa e incomparável, o seu fim, idem. Recriar isso na ficção é difícil, mas, para mim, o primeiro passo para fazer isso de maneira correta é respeitar a morte. Aceitar sua importância, seus efeitos e sua inevitabilidade.

Isso implica que, em uma obra de ficção, quando uma pessoa morre, ela deve morrer. Master obvious. Fantasmas, viagens ao outro mundo, spooky stuff, etc são permitidas. Ela não afetam o status de morto de quem morreu. Contudo, na minha opinião, é uma tremenda desonestidade sugerir enfaticamente a morte um personagem e esse aparecer algum tempo depois novinho em folha. É um pecado que battle shounens atuais (e alguns antigos) cometem. Em One Piece é comum que personagens se sacrifiquem durante uma batalha ou um desafio para que esse seja vencido, mas, eventualmente, eles voltam. É revelado que eles não morreram por um triz. Ás vezes uma desculpa é dada, às vezes nem isso (os melhores exemplos são Pell e Bon Kurei).

Quando alguém que se sugere que morreu, na verdade, não morreu, brinca-se com a morte. Uma morte em uma obra de ficção, como dito antes, é uma sugestão da morte real. Nesse caso, a morte falsa pode ser vista como uma sugestão de uma sugestão. Duas vezes removida da verdadeira morte. É difícil ver como uma atitude dessas pode ser algo além de puro entretenimento, uma isca para prender o leitor. Ao invés de buscar a natureza real da morte aplacando todas as suas consequências e seus efeitos, apenas a sugestão é dada. É uma ação oportunista. É como se o autor quisesse toda a austeridade e impacto que circunda uma morte, mas não quer pagar o preço de perder um personagem carismático e evitar os impactos, que podem ser profundos, na sua história. Se um personagem não morre de verdade, não existe luto nos sobreviventes. Nenhuma cicatriz é ganhada. É por isso que eu considero essas pseudo-mortes uma desonestidade. Uma peça pregada no leitor e um desrespeito a esse, como também ao próprio conceito de morte. Eu lembro que antes da morte do Ace e do Barba Branca era comum em fóruns dizer que “Em One Piece, ninguém morre” (fora de flashbacks). Existia uma desconfiança do leitor na seriedade do autor para com a sua história e os seus personagens.

Quando uma morte é bem realizada na ficção, seus efeitos são excepcionais. É comum que ela se torne o motor da história, fonte da sua sublimidade. Há muitos exemplos disso.

O que seria de Simba sem a morte de Mufasa? Se a tendência se mantivesse, seria grande a chance de crescer mimado e indigno do trono. É o que revela a música “O que eu quero mais é ser Rei” (e, saindo um pouco do foco do texto, é impressionante como as músicas nos filmes da Disney refletem os temas abordados. É digno de aplauso). Simba é obrigado a enfrentar a natureza sombria do mundo por causa da morte do seu pai. Ele, a princípio, foge. Evita as responsabilidades e engaja numa vida de liberdade e prazer. É necessário que ele aceite as suas responsabilidade e entenda o significado do trono, para que possa voltar e administrar a justiça e a bondade enfrentando o seu tio.

Algo semelhante acontece em Tengen Toppa Gurren Lagann. Kamina era brilhante e excepcional e, de certa forma, inspirava Simon. No entanto, esse último é frouxo, passivo e muito dependente de Kamina. Alimentava, em seu interior, sentimentos de impotência e inveja (a expressão crítica dessa inveja é o seu ódio pela relação entre Kamina e Yoko). O sacrifício insano de Kamina muda tudo. Ele obriga Simon a enfrentar a realidade, a construir uma identidade, a amadurecer. Apesar de Kamina ser, para sempre, predileto ao público do anime, Simon o supera. Ele se torna mais responsável que Kamina, mais sábio, mais sensível. Muitas coisas que Simon faz mais tarde, são impossíveis para Kamina. Esse novo e melhorado Simon só é possível, por causa da estupenda morte de Kamina (outro fator crítico no desenvolvimento de Simon é a sua paixão por Nia, mas isso é pano para outra discussão).

Os exemplos da antiguidade não são menos interessantes. Na verdade, são a fonte da maneira com a qual, normalmente, lida-se com a morte. Sem Ilíada, não existiria One Piece, TTGL ou Rei Leão. Pelo menos, não da mesma maneira. A morte de Pátroclo é o momento mais importante da Ilíada e, talvez, o mais arrepiante (na minha opinião, apenas o discurso de Fênix, a descrição do escudo de Aquiles ou a conversa entre Aquiles e Príamo no final são comparáveis). A morte de Pátroclo é motor e fonte de mudança para tanta coisa na epopéia que é difícil não subestimá-la. É ela quem aplaca a cólera de Aquiles e permite que esse se reconcilie com o Rei Agamenon. É o que alimenta a sua fome por vingança e a chacina que impõe aos troianos. E que, finalmente, culmina na sua glória atemporal depois que ele mata Heitor, assassino de Pátroclo. Sem tal morte, não existiria glória para Aquiles, pois ele iria para casa e passaria o resto dos seus dias vivendo modestamente. Isso implica, por sua vez, que Heitor continuaria vivo. Com Heitor vivo e Aquiles longe, não haveria conquista e saque de Troia.

O épico de Gilgamesh não fica para atrás. A morte de Enkidu, seu melhor e mais fiel amigo, faz Rei Gilgamesh questionar a sua mortalidade. Gilgamesh é o mais poderoso dos homens, e o único que possuía força comparável a sua era seu amigo Enkidu, mas mesmo ele morre. Esse é o gatilho que faz Gilgamesh viajar o mundo em busca de imortalidade. A morte de Enkidu tem um efeito muito mais pessoal que a de Pátroclo na Ilíada; contudo, é tão devastadora e influente quanto. A morte de Enkidu faz o próprio Gilgamesh reconhecer o poder e a inevitabilidade da morte, essa que se mostra claramente superior a própria força de Gilgamesh.

É quase como se ocorresse um processo de osmose entre a austeridade da morte e o resto da história. Gilgamesh mata monstros poderosos para atestar sua força. Os heróis da Ilíada matam dezenas para aumentar o seu respeito e honra. Esses só crescem, porque a morte tem valor e, consequentemente, é respeitada. Talvez a morte de tantos seja horrenda, mas cada uma delas é respeitada e tem propósito. O medo da morte, invariavelmente, resulta na valorização da vida. Exemplos disso são o luto e os funerais arrasadores que acontecem nas obras citadas antes. Durante boa parte da história da humanidade, a guerra foi vista, às vezes, de maneira positiva, pois representava uma oportunidade para que o ser humano enfrentasse a morte com algum significado. Uma oportunidade para morrer não de maneira amarga e monótona como em momentos de paz, mas sacrificando-se por um ideal maior. Foi preciso que a Primeira Guerra Mundial acontecesse com os seus trituradores de carne horrendos e ineficientes (onde milhões morreram para moverem trincheiras uns poucos metros), para que essa visão fosse questionada e, para a maioria das pessoas, descartada.

Mexer com a natureza infalível e austera da morte questionando-a não é proibido, mas deve ser feito de maneira consciente e cuidadosa. São águas mal exploradas na Arte. Um dos motores do Cristianismo é a ressurreição de Cristo, onde Deus vergou a própria morte. Ressurreição é um conceito poderoso, pois admite o poder da morte. É muito diferente de simplesmente brincar com a morte.

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9 respostas para Joking Death

  1. Emanon disse:

    Por Deus, este blog é supimpa!
    Por que vocês pararam de postar?

    • erequito disse:

      Vagabundagem do quadro de blogueiros somado a diminuição do interesse dos mesmos por mangá e anime. Eu tenho vontade de retomar o blog e, por causa disso, acabo escrevendo 1 ou 2 posts por ano, mas é pífio diante do comprometimento que eu realmente gostaria de ter.

  2. seiláqlqum disse:

    O que aconteceu com o Vaca, House, Night? O que andam aprontando? Sinto falta das postagens discussões de vocês no fórum project.

  3. tantofazmanofazdiferençaessaporra disse:

    Passa face do maurício aí

  4. Emanon disse:

    Boa tarde, qual opinião dos senhores sobre Chainsaw Man?

  5. Pingback: Death Note e o valor do tédio | All Fiction

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