Um ensaio sobre o uso da “negação de padrões” no jogo de terror P.T. e como traços desta são encontrados quando se aprecia algo suficientemente diferente do que se conhece

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O título é horrível, mas diz tudo a respeito do texto.

P.T. não é, exatamente, um jogo. Trata-se de um teaser promocional jogável. É uma amostra do que se pode esperar do novo Silent Hill que está sendo desenvolvido pela dupla Hideo Kojima (Metal Gear Solid) e Guillermo del Toro (Pacific Rim). E, sem enrolar muito, pode se dizer que P.T. é assustador. É de cagar nas calças. Caso não possa jogar, recomendo que assista algum vídeo de alguém jogando no Youtube. Não é uma experiência tão intensa quanto o jogo em si, mas é o suficiente para entender o que pretendo dizer no resto do texto (contém spoilers).

Silent Hill, em seu primeiro título nos tempos áureos do Playstation 1, mostrou como é possível fazer “terror psicológico” em jogos eletrônicos. Esse tipo de terror é diferente do que se encontra em jogos como Resident Evil, que é baseado em sustos, em situações críticas e em pânico. O que Silent Hill faz, ao invés disso, é incitar o medo de maneira mais profunda e menos dramática. Silent Hill usa mistério, suspense e estranheza, enquanto que Resident Evil usa zumbis, gore e precariedade.

(Silent Hill usa gore e sustos também, mas isso é periférico diante do uso habilidoso dos outros elementos.)

Por causa disso, Silent Hill, mais do que assustador, é perturbador. É o tipo de coisa que vai causar pesadelos por um bom tempo depois de ser jogado. O novo Silent Hill, como demonstrado por P.T., aparenta seguir o mesmo caminho.

Quem primeiro mostrou que se pode beber dessa fonte com o objetivo de perturbar pessoas, foi H.P. Lovecraft, escritor do começo do século XX. O que Lovecraft fez de especial é coerente com a mudança de paradigmas que ocorria na época. Era o começo do movimento artístico moderno e isso se refletia na arte, na filosofia e até mesmo na ciência. O Modernismo, entre muitas coisas, é o fim das certezas universais, o abraço ao relativismo e o abandono da busca pela eternidade, pela beleza e pelo perfeito na arte. É no Modernismo que questões como “O que é arte?” foram feitas, mas não foram respondidas. Isso se reflete na grande diversidade das formas, das intenções dos autores e das misturas nas obras pertencentes ao movimento Moderno.

O Modernismo, na prática, significou uma ampliação de possibilidades para os artistas e um relaxamento dos critérios de avaliação de uma obra.  Sem o Modernismo não existiria Rhapsody in Blue (presente na trilha sonora do filme da Disney Fantasia), porque as formas anteriores ao modernismo não permitiam a mistura da música erudita com o jazz. Misturas eram vistas como corrupções das formas, transgressões das regras de como fazer arte. É esse novo ambiente cultural que permite a produção dos livros de Lovecraft. A literatura, anterior ao Modernismo, ocupava-se em descrever o que era bonito, o que era heróico, o que era pertinente a experiência humana. Nem tudo, como poderia se presumir, era uma mar de flores. Existe muita tristeza e tragédia nas obras clássicas, mas até essas são sublimes. Há algo de tocante ao se ver a tristeza, o desespero e o conflito dos personagens.

Lovecraft não se importa com nada disso. Trata-se, justamente, do contrário. Ele escreveu sobre o que era horroroso, perturbador, desconhecido, ininteligível e incontrolável (guarde esses adjetivos, vou retomá-los quando discutir P.T.). Como em tragédias, os personagens de Lovecraft sofrem e se desesperam, mas não há nada de belo nisso, porque não se entende o que os ameaça. O sofrimento nas tragédias é belo, porque reflete a dignidade dos personagens ao encarar seus problemas. Não se encontra isso em Lovecraft, apenas impotência, mediocridade e perdição.

Vale a pena citar exemplos: Os personagens de Julio Verne são completamente opostos aos de Lovecraft. Eles são confiantes, inteligentes, austeros e, com auxílio e domínio da ciência, são capazes de entender qualquer situação e resolver qualquer problema. Em Viagem ao Centro da Terra, os personagens, em sua jornada, exploram o desconhecido e o maravilhoso, mas, como são inteligentes, são capazes de criar teorias que explicam qualquer situação em que se encontram. Em Volta ao Mundo em 80 dias, Phileas Fogg, o protagonista, atravessa os mais exóticos ambientes da Terra com sucesso e pontualidade. Só é capaz de fazer isso, pois planeja, entende e executa sua viagem com perfeição.

Lovecraft, por sua vez, afirma que a ciência não é capaz de entender tudo. Sendo específico, segundo ele, ela é capaz de ajudar em quase nada. O universo dos livros de Lovecraft é grande e complexo demais para ser entendido pela mente humana. E, pior, o que existe além da nossa concepção é horrores e desesperos inconcebíveis. Exemplo disso é Ctulhu, uma força/ser/monstro ancestral cuja concepção é impossível para a mente humana. Qualquer tentativa em lidar com ele por parte de seres humanos resulta em fracasso humilhante e horror inimaginável. A ironia maior é que o texto de Lovecraft é tão científico quanto o de Julio Verne. A descrição da suas histórias é objetiva, quase como um relatório clínico dos personagens. Entretanto, mesmo sendo objetivo, não é possível descrever o que, de fato, acontece com eles.

Em contrapartida, por mais que Lovecraft defenda, de certa forma, que não vale a pena entender as coisas, é impossível evitar. É, justamente, ao tentar entender o que é ininteligível que surge o elemento perturbador da suas obras. Porem, esse desejo de compreender se manifesta com qualquer coisa. Nós buscamos entender com o que lidamos até o ponto em que se torna previsível, até identificarmos padrões de comportamento.

É uma experiência que todos nós passamos ao lidar com o completamente novo. Eu sugiro que fique atento ao seus sentimento e aos seus processos mentais quando isso acontecer com você. É uma experiência interessante. Vou dar alguns exemplos pessoais.

Quando eu joguei Dear Esther pela primeira vez, eu não sabia o que esperar. No jogo, você toma controle de um homem e explora uma ilha deserta enquanto escuta comentários desse homem a respeito de acontecimentos da ilha. É essencialmente isso que você faz no jogo inteiro: caminha e escuta.  Contudo, eu não sabia disso antes de jogar, só tinha uma vaga ideia de que era um jogo diferente do que estava acostumado. A atmosfera de Dear Esther é sombria: o cenário é cinzento, o céu é nublado, venta muito e tudo na ilha está abandonado. Por causa dessa atmosfera, eu achei que fosse um jogo de terror. Qualquer jump scare que acontecesse me faria pular da cadeira. Como nada acontecia e eu não desistia dessa ideia de que o jogo era de terror, acabei ficando tão tenso que fechei o jogo. Só algum tempo depois, encarei de novo o jogo. Algo semelhante acontece em P.T., com a diferença de que é proposital.

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Outro exemplo relevante é a minha experiência ao ler Ésquilo, autor de tragédias gregas. Eu cheguei cru e desinformado nas minhas primeiras leituras das suas obras. A única coisa que sabia é que eram peças de teatro antiguíssimas e que, supostamente, deveriam ser tristes (trágicas). O fato de seres muito antigas contribui para a minha desorientação visto que a obra dispensa muitos métodos, intenções e tropes que utilizamos hoje em dia quando contamos histórias.  Quando se aprecia algo pertencente a um gênero sobre qual já se está familiarizado, o processo de leitura se resume a identificar os elementos comuns ao gênero. No caso de um Battle Shounen, por exemplo, esse processo constitui-se em identificar heróis, vilões, poderes, temas, etc. Existe esse conjunto de elementos que quase todo Battle Shounen possui e basta procurá-los e identificá-los para que possa se entender o mangá. Em outras palavras, o padrão já está na cabeça do leitor, ele só precisa “preencher as lacunas” e, depois de fazer isso, ele compreende o que lê. Isso é algo tão onipresente que não seguir um desses padrões já é motivo de discussão: um herói que faz coisas erradas; um vilão que, eventualmente, vira bonzinho.

No caso de Ésquilo e suas tragédias, esses padrões também existem: Toda peça possui um coral que conversa com dos demais personagens. Ele é formado por moças ou por anciões. As peças contam episódios trágicos da mitologia e da história grega. A razão de Ésquilo usar corais vem do fato de que esses são emocionalmente poderosos ao expressar e compartilhar as aflições dos personagens, além de que o público pode se identificar com eles, visto que esses dão voz ao senso comum, enquanto os demais personagens apresentam traços mais únicos. Um dos grandes méritos de Ésquilo é dar expressividade e humanidade com suas encenações e reinterpretações. O que antes era apenas uma história impessoal, textos em um papel, passa a ser incorporado por seres humanos. Ganha sentimentos e ressoa com o espectador. Só que eu não sabia nada disso antes de ler. Fui aos poucos lendo e conjeturando até formar uma ideia básica. Nos momentos em que eu ainda não tinha consolidado essas noções, a obra de Ésquilo me desorientou e me frustrou.

O que acontece em P.T. é que essa experiência de desorientação é levada um passo adiante. Quando a mente humana não consegue identificar padrões e previsibilidade em situações hostis, o desespero é natural. Em P.T. você percorre um mesmo corredor várias e várias vezes. Só que cada vez acontece algo diferente, horrendo e inexplicável. A situação é uma antítese que desafia a consciência. Você percorrer o mesmo corredor de novo, de novo e de novo. Ou seja, há um padrão ao qual a mente se segura. Só que esse padrão não garante previsibilidade, ele é fisicamente impossível, pois a porta pela qual se sai não deveria ser a mesma por onde se entra no corredor. Simplesmente, elas não se “encaixam”. Então o único padrão oferecido pelo jogo é uma impossibilidade. O jogo também faz questão de deixar sinais diferentes a cada nova passagem pelo corredor. Os sinais são informação inútil e, ao invés de explicarem alguma coisa, confundem.

P.T. é fotorrealístico também. A mente poderia se refugiar no fato de que a aparência do jogo é irreal, mas ela não é. A aparência realista contribui para a imersão do jogador. A mente aceita a situação em que o jogador se encontra. E essa aceitação é crucial para que P.T. exerça sua mágica, para que o perigo oferecido “bata em casa”.

No fim, toda essa negação de padrões é essencial para o terror em si. O corredor de P.T. tem uma curva e algumas portas fechadas. Como nenhum padrão sólido é apreensível, então seja lá o que estiver depois da curva ou atrás das portas é imprevisível. A única sugestão que o jogo dá a respeito do que está lá é que coisa boa não é (exemplo das sugestões do jogo: sangue, barulho, escuridão, etc). Se P.T. fosse escrito por Lovecraft, o que poderia estar ali seria Ctulhu.  Só que o monstrão ancestral das trevas nunca foi mostrado por Lovecraft. P.T., por sua vez, mostra os monstros. Essa diferença é crucial.

Os monstros de P.T. existem: o feto demoníaco; os fantasmas; os zumbis. Eles aparecem depois que você abre a porta ou faz a curva do corredor. P.T. cumpre as suas promessas de que algo horroroso está depois do corredor, mas isso não é necessariamente bom. No momento em que o monstro aparece, a “negação de padrões” é descartada, porque o monstro é um padrão bem definido. Você até pode não vê-lo direito, mas passa a ter ideia do que ele pode fazer. Sugestões do que ele é, e do que é capaz inundam a mente, e elas nunca são postas em xeque da mesma forma que todos os padrões antes eram. O monstro até pode ser muito feio, mas ele deixa de ser uma ameaça ininteligível e onipresente. O “terror psicológico” reduz sua presença e os jump scares começam a se tornar mais frequentes. No fim de P.T., a maioria dos jogadores recupera a calma, pois o jogo se torna previsível. Os jogador não precisam entender o que está acontecendo para não se assustarem, é necessário apenas mostrar que as ameaças são infundadas.

É isso que me preocupa no novo Silent Hill. P.T. dura uma hora. Não é possível estender sua fórmula e fazer um jogo que dure entre 10 e 20 horas mantendo a mesma intensidade. A solução fácil seria o que eu chamo de jump scare creep. Resume-se a tornar os monstros mais poderosos, mais ameaçadores, mais invasivos e mais feios a cada jump scare. Nesse caso, os padrões que o jogador venha a propor são sucessivamente quebrados e a desorientação e o medo persistem. Entretanto, essa solução apresenta problemas. Há uma grande chance que os monstros finais, em vez de pavorosos, sejam ridículos devido ao exagero.

Outro problema é que existe um freio moral que age sobre esses jogos mais comerciais. É a uniformidade que o pensamente politicamente correto traz. Por exemplo, o próprio P.T. contém um feto demoníaco. Isto já está quase no limite do que o politicamente correto permite. jump scare creep é inviável se for necessário incluir coisas ainda mais horripilantes. A sociedade não permitiria. Talvez seja por uma causa relevante. Não duvido que pessoas sofram ataques de pânico jogando o atual P.T.. Eles iriam se tornar ainda mais frequentes e sérios se P.T. se estendesse por mais tempo sem perder a intensidade.

Eu até hoje não sei direito porque temos interesse em terror. Faz parte da natureza humana, mas é uma parte que não é nobre. O pânico nunca foi celebrado pelos grandes poetas. É a coragem que os inspira. Cito algumas possíveis explicações: Talvez não seja possível apreciar o grandioso e o nobre, sem antes presenciar o medíocre e o vergonhoso. Outra opção é que é útil e importante atestar os limites do ser humano. Somos uma espécie orgulhosa e a melhor maneira de combater isso é jogando na nossa cara o quanto incapacitados nós podemos ser. Porém, nada disso é prazeroso e, no máximo, é útil e necessário. A última opção, na qual acredito, é que os impulsos humanos da curiosidade e da sobrevivência se fazem presente nessas situações. Temos a tendência instintiva de seguir adiante e de entender as coisas mesmo em situações adversas. É nesse aspecto que talvez exista algo belo e sublime em meio ao horror e ao desespero nesses jogos de terror.

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3 respostas para Um ensaio sobre o uso da “negação de padrões” no jogo de terror P.T. e como traços desta são encontrados quando se aprecia algo suficientemente diferente do que se conhece

  1. Gorgoll disse:

    Eu, pessoalmente, apesar de ter grandemente apreciado esta resenha, discordo de um fato: O de que Lovecraft tenha sido o primeiro autor a gerar temor pelo desconhecido. Os livros das grandes religiões, inclusive a Bíblia, já o conseguem fazer desde os primórdios da humanidade. Os Mitos de Cthulhu são apenas a mais bem-sucedida criação artificial de uma mitologia, emulando assim às religiões clássicas.

    A maior diferença entre as Sagradas Escrituras e a sua obra é que nelas Azatoth e Yog-Sothoth são entes não apenas bons, e sim ÓTIMOS. Poder-se-ia mesmo fazer uma leitura platônica na qual estes mesmo no universo de horror cósmico que Lovecraft criou não são maus, pois garantem a existência, que é em si um bem.

    Mas acho que estou viajando demais…

    • erequito disse:

      Eu concordo que Lovecraft não seja o primeiro grande do terror. Não preciso nem citar os livros religiosos, Frankenstein já precede Lovecraft. Sherlock Holmes também utiliza elementos macabros/ininteligíveis (até o sherlock desvendar o mistério) e veio antes. Eu só usei Lovecraft porque o tipo de terror é muito parecido com o que existe em Silent Hill.

  2. Roberto disse:

    Jogos de terror são interessantes porque são uma forma de materialização concreta do nosso inconciente. É como achar a resposta para algo mesmo que não seja totalmente verdadeira!

    Eu acho que PT sera um grande jogo, porque tem a mão do Kojima e isso me anima, mas ao mesmo tempo estou decepecionado (como fã de SL) porque essa prêvia apesar de boa, mas mostrou 1% que fosse da essência de silent hill, ou seja até agora é apenas um game que apenas usa um nome consagrado! Mas é o Kojima, vejamos o que ele vai fazer, bom ou ruim sei que vou jogar mesmo!! LoL

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