Games são arte?

Todo mundo diz que sim, né?

Com exceção de uns dois ou três velhacos, é quase unânime a afirmação de que, sim, games são arte e ponto final. E, de fato, acredito que alguns títulos mais aclamados encaixam-se confortavelmente, sem muita discussão, dentro dos limites do que é arte. Entretanto, também acredito que a discussão não é tão simples quanto parece. O objetivo do texto é, justamente, apresentar os problemas que surgem quando se classifica jogos como arte sem muita reflexão.

Eu gostaria de mostrar que a oposição de algumas pessoas não vem da ignorância delas a respeito do meio.  Não é o preconceito de que “video games são para crianças” que justifica a negativa de alguns críticos. Eles sabem do que estão falando. Ás vezes, sabem bem mais do que a pessoa que jogou video game desde criança e que classificou games como arte, por causa de suas impressões subjetivas da experiência.  Não é porque o jogo causou-lhe feels intensos que ele pode ser classificado como arte.

O que é Arte?

Pergunta capciosa que muitos filósofos e gente inteligente tentou responder sendo que nenhuma resposta dada tem consenso universal. Como existem muitas definições para arte e, dependendo da escolha, muita coisa deixa ou passa a ser arte, vou adotar um conceito mais prático sobre o qual possa-se argumentar alguma coisa. Seria fácil adotar um “HUE EVERYTHING IS ART”, mas, daí, a brincadeira não tem graça. É um conceito libertino que não valoriza quem realmente se esforça para fazer uma obra que se digne de ser chamada de arte. Afinal, o termo “arte” perde todo o charme quando pode ser aplicado a qualquer coisa. Então, nem vou apresentar uma definição de arte, vou apresentar uma condição de arte, que, caso seja satisfeita, garante o título de arte à obra em questão.

“Uma obra é arte quando, conscientemente, tenta criar a melhor ponte possível entre os sentimentos (ou um ponto de vista da realidade) do autor da obra e o espectador da obra.”

Ponte, palavra no enunciado da condição, significa uma espécie de transmissão. É uma tentativa do autor passar alguma coisa ao seu espectador, sendo esta coisa sentimentos ou um ponto de vista do mundo. Essa condição evidencia uma aplicação real da arte. Ela não é apenas frufru pseudo-intelectual. O fato é que nós, seres humanos, vivemos uma existência só. Nossa experiência da realidade é subjetiva. Ninguém pode sentir exatamente o que nós sentimos. Você pode se sentir feliz, você pode dizer que se sente feliz para alguém, mas a pessoa escuta palavras. É incapaz de sentir o que você exatamente sentiu. Você também não pode incutir diretamente os seus sentimentos nela.

Arte pode ser interpretada como uma tentativa de ultrapassar essa barreira. De tentar reproduzir em outros seres humanos a sua experiência de vida. É por isso que muito do que se chama de arte é carregado de emoção, é o resultado do esforço do artista de passar o que ele sentiu ou o que ele quer que você sinta através de uma obra.

Não é preciso fazer referência a grandes obras da história para exemplificar isso. CLANNAD: After Story é o suficiente. A razão de ser uma experiência emocionante e poderosa vem do fato de que o anime consegue passar com sucesso as emoções que os personagens sentem em determinados momentos críticos. Ele te insere na situação, te coloca no lugar dos personagens e, só assim, você consegue ter uma amostra do que esses personagens sentem.

É possível argumentar que o objetivo final da arte, a sua utilidade social, é aumentar a humanidade do ser humano. É fazê-lo perceber que sua experiência subjetiva do mundo encontra semelhantes em outros seres humanos. Ou, também, que existem experiências do mundo sobre as quais não se tem a menor ideia. A boa arte nos torna menos egoístas, ao mesmo tempo que enriquece a nossa vida. É, em outras palvras, expressão da empatia entre seres humanos.

Se a obra respeita a condição exposta acima, ela é arte. Se não respeita, ela ainda pode ser. Eu consigo enumerar coisas que, claramente, são arte, mas que não respeitam essa condição. A música de Bach é um exemplo. Não existe emoção no que ele compõe, mas existe beleza e maestria. Bach não tenta comunicar nada ao seu ouvinte (pelo menos nada emocional), e qualquer emoção que o ouvinte venha a sentir enquanto escuta, é responsabilidade apenas dele. Em pouca palavras, Bach compôs coisas complicadas que soam bonito, e essa era sua intenção. Bach veio antes do Romantismo, quando a emoção na música ainda não era muita valorizada.

E os Games?

A princípio, muita jogos respeitam essa condição. Vários jogos são experiências interativas imersivas. Eles fazem exatamente o que a condição estipula, transportam-te para outro mundo; colocam-te no lugar de outra pessoa. Os problemas surgem quando os games apresentam aspectos que conflitam com a condição. De um ponto de vista, eles a respeitam, mas, de outro, não. Isso surge do fato de que jogos são obras segmentadas, onde a interatividade é o aspecto único, o resto é pego emprestado da pintura, da fotografia, do cinema, até mesmo da computação. Tudo é juntado e o resultado nem sempre é consistente.

Entretanto, esses são os casos complicados. Vamos começar por jogos que, definitivamente, não são arte.

Jogos como Ferramentas, Brinquedos e Competição

Pouca gente defende que jogos de mesa como War (RISK), Detetive (Cluedo) e Cobras e Escadas sejam arte. Eles possuem gravuras, são coloridos e as emoções envolvidas nesses jogos podem ser intensas; entretanto, elas não são intrínsecas ao jogo. Tais jogos, definitivamente, contém arte em seus elementos, ou melhor, usam arte para alcançar seus objetivos. Contudo, esses jogos se resumem a plataformas de competição. São um conjunto de regras e de recursos usados para que pessoas possam competir umas com as outras. O jogo não apresenta intenção de comunicar sentimentos ou realidade, logo não respeita a condição.

Muitos jogos eletrônicos surgiram como versões virtuais de jogos de mesa. Atestando isso, já se descarta qualquer jogo multiplayer competitivo como obra de arte. São apenas implementações eletrônicas de jogos de mesa. Plataformas eletrônicas de competição.

Posso parecer insensível ao descartar coisas magníficas como Starcraft, Dota e Counter Strike, mas eles são focados em competição e vitória.  Se existe algum conflito de opiniões, é porque jogos, como dito antes, são misturas de elementos de natureza diferentes. Esses jogos podem ter uma aparência única ou uma trilha sonora agradável, mas o que se sobressai quando você analisa o todo é a competição. E o que se sobresai é o que justifica a existência do jogo. É pelo que ele deve ser julgado.

O que também dá para descartar são os sandboxes. Jogos que são, praticamente, brinquedos eletrônicos. Esses jogos dão ao seu jogador um espaço virtual e alguns recursos, ferramentas e possibilidades. LEGO é um exemplo não-eletrônico desse tipo de jogo. Um exemplo eletrônico seria Minecraft. O jogo em si não é arte. É apenas um espaço virtual que dá muitas possibilidades ao seu jogador, onde é possível fazer arte. Entretanto, isso não eleva o jogo ao status de arte, só mostra que ele pode ser visto como ferramenta com a qual arte pode ser feita. É como se fosse o pincel e a tinta para um pintor. Não são arte, mas sem eles não tem pintura. Essa característica pode ser vista em quase todos os sandboxes.

Simuladores são um caso semelhante. Eles, aparentemente, respeitam a condição proposta, já que proporcionam ao seu jogador uma experiência realista de uma outra realidade existente no mundo: desde condução de trens a pilotagem de avião. No entanto, essas experiências são emocionalmente estéreis. Não existe a intenção artística de um autor por trás delas. O que é dado para o jogador é a reprodução mais exata possível de uma realidade. Isto é bem diferente do “ponto de vista da realidade” presente no enunciado da condição. Um ponto de vista é uma perspectiva, exige um parecer de um ser humano que olha para a realidade. Um ponto de vista da realidade é, de certa forma, uma opinião sobre algum aspecto da vida. Uma reprodução perfeita não possui opinião, é uma experiência crua que é administrada apenas jogador. E, no caso de um bom simulador, o jogador recebe apenas essa experiência de mundo sem nenhum toque subjetivo ou opinião de outra pessoa. O jogo até pode ser muito realista, mas ele não busca alcançar o objetivo da arte proposto anteriormente, que é aproximar os seres humanos.

Entretanto, esses são os casos de fácil discussão. Quase ninguém defende que estes tipos de jogos sejam arte.

Consistência, Interatividade e Propósito

O grosso da argumentação a favor do reconhecimento dos jogos como arte cita, como exemplos, games como Shadow of the Colossus, Thomas Was Alone e Journey. Esses jogos costumam possuir alguma característica única ou muito bem executada que os elegeram a ser usados na discussão. Tal elemento pode ser uma ambientação única e muito bem conduzida, ou uma expressão de emoções excepcional através de mecânicas de jogo ou, ainda, uma história interessante cuja experiência da mesma se torna melhor devido a interatividade propiciada pelo meio.

Contudo, isso é suficiente para classificá-los como arte? Antes de dar um veredicto é necessário expor alguns aspectos. São eles que tornam a discussão complicada.

Aceita-se que jogos são uma mídia composta. Jogos não são experiências unificadas, são compostos por várias partes que são bem diferentes uma das outras. Entre essas partes estão a estética, as mecânicas de jogo, a trilha sonora e a história. Elas são diferentes e não podem ser combinadas por serem apreciadas de maneira diferentes, por serem percebidas com sentidos diferentes. A pintura, por exemplo, é uma experiênca unificada. O sentido que é utilizado é a visão, e toda interpretação é baseada apenas no que é visto. No caso de jogos eletrônicos, a interpretação depende do que é visto (estética), do que é ouvido (trilha sonora), de que maneira se avança (mecânicas) e de que maneira se justifica (história). Cada uma dessas coisas tem natureza diferente e é necessário muita habilidade para que o resultado de cada uma dessas características seja consistente com o resto. Ser consistente significa expressar a mesma coisa por meios diferentes. É passar a ilusão de que o jogo é uno, por mais que, na verdade, seja multíplo.

O cinema mostra que isso, até certo grau, é possível. Filmes são multíplos que, caso sejam bem feitos, parecem uma única coisa que serve a um único propósito. E ninguém nega que cinema seja arte.

Então por que o caso dos jogos eletrônicos é diferente? A resposta está naquilo que define o jogo, o que o diferencia fundamentalmente do cinema: a interatividade. Interatividade é só um nome mais bonito que resume a nova responsabilidade atribuída a quem usufrui da obra. O consumidor de arte deixa de ser um espectador e passar a ser um contribuidor (é um processo que possui análise e síntese). Sua contribuição é essencial para a conclusão da obra. Nessa situação, a obra não existe sem o consumidor, da mesma forma que, como a contribuição de cada consumidor é diferente, o resultado é sempre diferente. Se você pensar um pouco, vai perceber o quanto isso é radicalmente diferente do que normalmente se convenciona como arte.

A responsabilidade do espectador de obra de arte convencional pode ser resumida na seguinte sentença: prestar atenção para que possa entender. A obra de arte convencional é uma entidade a ser investigada (é um processo que possui apenas análise). Ela é a mesma para todo mundo e, idealmente, depois de todo mundo apreciá-la, o conceito final resultante da experiência deveria ser comum, o mesmo para qualquer um. Não é o que acontece visto que a experiência de vida entre duas pessoas nunca é igual e esta afeta a interpretação de qualquer tipo de coisa, logo as interpretações vão ser diferentes. Isso não é problema, já que por causa dessa diversidade de interpretações novas coisas podem surgir. Contudo, é interessante que exista semelhança entre as interpretações, pois é nela que se encontra as intenções do autor. O autor, como foi dito nas seções anteriores, quer passar alguma coisa com sua obra e ele tem esperança que essa coisa nas outras pessoas não seja radicalmente diferente do que ele concebeu inicialmente. Sem isso, não existe comunicação, não existe aumento da humanidade e toda aquela utilidade social da Arte vai água abaixo.

Quando interatividade entra na jogada, o troço vira de cabeça pra baixo. É quando se começa a questionar se a obra ainda é arte. Não é necessário citar jogos ainda para mostrar isso. O resultado da interatividade aplicado as velhas mídias fala por si só. Um bom exemplo é a música 4,33 de John Cage. A performance de 4,33 consiste em uma orquestra não tocar nada por 4 minutos e 33 segundos. Se supõe erroneamente que 4,33 é silêncio, nulidade, mas, na verdade, a “música” é o som ambiente produzido pela plateia que tenta ficar em silêncio durante esse intervalo. O resultado é que 4,33 é diferente para cada plateia. Também é válido dizer que 4,33 não existe sem a plateia. O que John Cage faz como autor é limitar a liberdade de ação da platéia. É, essencialmente, dizer fiquem quietos por 4 minutos e 33 segundos e vamos ver no que dá. Isso encontra semelhanças com jogos eletrônicos. Um jogo não existe sem um jogador e a experiência só é completada quando o jogador a termina. A responsabilidade do autor de um jogo é limitar a liberdade do jogador. É nessa área limitada que a interatividade acontece.

Existem vários “graus” dessa participação do jogador. E, às vezes, é observando justamente a quantidade de liberdade e a maneira que o jogador interage que se pode avaliar se um jogo é ou não arte. Um exemplo de liberdade quase completa onde os limites dados ao jogador são mínimos já foi apresentado antes: Minecraft. A liberdade dada é tamanha que qualquer coisa feita dentro do jogo pode ser atribuída ao jogador. Quando a liberdade é extrema o jogo vira uma ferramenta carente de qualquer tipo de emoção ou intenção, a figura do autor some.

O caso oposto é quando a liberdade é mínima, quando as escolhas feitas são ilusões. Quando autor determina exatamente o que vai acontecer dentro do jogo. Nesse caso, apertar botões é apenas uma maneira de avançar a obra, não causa mudança significativa na mesma. Stanley Parable é um exemplo desse caso. O jogo lhe oferece escolhas evidentes, mas o resultado delas é pré-definido. Os fins foram escolhidos muito antes de qualquer jogador tocar no teclado e no mouse. E eles não mudam independentemente do que o jogador faça no jogo. O jogo até brinca, em certo momento, admitindo que todas as escolhas que ele oferece ao jogador são uma ilusão, e a única verdadeira escolha que o jogador pode fazer é apertar a tecla esc e sair do jogo. Essa é uma das razões que eu não tenho nenhum problema em classificar Stanley Parable como obra de arte.

Nesse tipo de experiência, o jogador se mantém fiel ao que o autor quer. A única real funcionalidade de apertar botões é que isso, de alguma forma, pode tornar a intenção do autor mais imersiva, mais palpável e mais intensa. Usando de trilha sonora, de mecânicas de jogo, de história, de estética, o autor pode atingir o jogador com mais força. Pode passar a sua mensagem com mais fidelidade. Ele, simplesmente, tem mais recursos que qualquer outra mídia pode proporcionar. Se uma obra seguir esse caminho basta que esses diversos recursos sejam consistentes entre si, que busquem simultaneamente o objetivo do autor com a obra.

Entretanto, nesse caso, a interatividade é uma ilusão. E, sendo este o caso, é possível classificar tais obras que restringem muito a participação do jogador como jogos? O que define jogos não é, justamente, a interatividade? Se você adotar essa definição, algo sem participação efetiva de um jogador (aquela que trás consequências e que contribui para a obra) não pode ser um jogo. Contudo, essa discussão não é o foco desse texto. E, como coisas como Stanley Parable são chamadas normalmente de jogos, vou aborda-las na discussão.

Um jogo, em questão de participação do jogador, pode se encontrar tanto no roteiro pré-definido de Stanley Parable, quanto na liberdade extrema conferida por Minecraft, ou em algum meio termo entre os dois. É interessante imaginar um desses extremos como uma linha pela qual o jogador é obrigado a seguir e que o leva a um lugar exato (a intenção do autor) enquanto que o outro extremo não possui linhas, mas sim áreas por onde o jogador pode se mover livremente e chegar aonde quiser. Um jogo pode estar em qualquer meio termo entre os dois e é interessante saber onde ele está a fim de discutir a respeito dele. Não acho que seja possível decidir se um jogo é ou não arte sem saber o quanto de liberdade ele dá e de que maneira isso afeta a experiência do jogador. Não existe lei geral, mas é interssante saber onde ele está, pois o quanto mais próximo ele estiver de uma linha precisa, mais facilmente ele será arte.

Mesmo que um jogo restrinja bastante a participação do jogaodor, ele não é, necessariamente, arte. A causa disso pode ser a imcompetência dos desenvolvedores. Da mesma forma que o cinema, um jogo dessa categoria precisa ser um multíplo que parece único. Se ele não parece uno, não há consistência. E uma das razões de algo ser inconsistente é que suas diversas partes servem propósitos diferentes e não se combinam. Contudo, isso não é apenas indício de que um jogo não é arte, também pode indicar que o jogo é ruim. E, mesmo que um jogo inconsistente não seja ruim, ele se “desmonta” em suas partes. Cada parte pode, nesse caso, ter status de Arte, mas o todo não. É o caso, na minha opinião, da maioria dos jogos. Eles se tornam “galerias de arte”. Bastion é um exemplo. As partes (principalmente a trilha sonora e estética do jogos) são excelentes, mas o todo não é coeso. O combate, particularmente, não combina com o resto. Ele é divertido, mas não se mistura com o resto dos elementos do jogo.

Logo, se um jogo é bom e se ele restringe a liberdade do jogador, ele é arte? Hmm… Ainda não é possível dizer com certeza. É nesse ponto que a discussão torna-se delicada.

Games não nasceram para expressar emoções, eles foram criados para divertir e assumiram outras funções conforme se desenvolviam. E, talvez, o principal fonte dessa diversão está na resolução de quebra-cabeças a fim de superar desafios. E, até hoje, isso se mantém como o  núcleo da maioria dos jogos. São coisas que podem ser vencidas, viradas, zeradas. Resenhas de jogos se focam nisso: no sucesso (ou no fracasso) do jogo em provir satisfação na resolução dos seus desafios. O ser humano tem um desejo instintivo de vencer, de se superar, e os jogos aproveitam-se disso.

No entanto, ao crescerem, desenvolverem-se, demandarem mais do jogador, um conflito surgiu. Algo que demande dezenas de horas para ser concluído precisa representar mais que um simples passatempo. É nesse momento que o primeiro passo em direção a arte é dado. Os jogos passam a ter história. Os quebra-cabeças, que antes existiam por si mesmos,  passam a ser “vestidos” por esse novo aspecto, passam a ser um mecanismo pelo qual se avança na história, ao mesmo tempo que a história os justifica. É uma cooperação benéfica para ambos. O mesmo pode ser dizer as respeito da trilha sonora.

Legend of Zelda é um exemplo muito conveniente. A franquia existe desde os primórdios dos jogos eletrônicos e fornece exemplos úteis na evolução dos seus jogos. O primeiro Legend of Zelda de NES é um jogo focado em exploração e conquista de dungeons. Cada dungeon é um quebra-cabeça que exige conhecimento, reflexos e coordenação para ser superado. O que “veste” cada incursão é a curiosidade. É cativante conhecer os mistérios de cada dungeon e conquistar, no fim, o tesouro.

A história, por sua vez, se sofistica mais a cada iteração da franquia (ela não existe no primeiro Legend of Zelda praticamente). O que antes era um elfo explorador, torna-se um herói com uma personalidade complexa e uma história cheia de detalhes e reviravoltas.

Sendo assim, Legend of Zelda é arte? Tornou-se arte na últimas iterações? Eu vou dar o palpite… Não. É só um palpite, pois confesso que não joguei muito os jogos dessa franquia, mas a razão por trás dessa negativa é que essa relação simbiótica entre superação de desafios e conteúdo artístico dificulta a classificação de um jogo eletrônico como arte.

É aqui que eu apresento o discurso impopular de que muitos jogos, alguns até muito celebrados, são perda de tempo. Eles são divertidos, mas não lhe fazem um ser humano melhor.

A satisfação na resolução de um problema é um prazer instintivo que nos foi conferido pela natureza (ou, por Deus, depende da sua orientação religiosa). Seres humanos se sentem bem ao resolverem problemas. Perceba que eu não me refiro ao prazer que a recompensa de um problema trás, mas da resolução da dificuldade em si. Nós nos satisfazemos ao ver as coisas se encaixarem, ao concluir raciocínios, ao fazer as coisas fazerem sentido.

Contudo, se isso for abusado, o processo se torna fatigante e não dá mais satisfação. Uma maneira de contornar isso é dar contexto a solução de problemas. Adicionar história, desenhos agradáveis, boas músicas, buscar fidelidade gráfica. Isso aproxima o jogo mais da vida real, o que dá mais credibilidade ao mesmo, mas isso tudo gira em torno dos desafios do jogo.

Considerando isso, para esses casos, a resposta da pergunta se o jogo é ou não arte se resume a saber quem serve quem. Desafios são um importante aspecto da experiência humana, mas que não se resume a isso. Se um jogo usa arte apenas para contextualizar os seus desafios, para justificar a vitória do jogador na sua conclusão, ele não passa de entretenimento. Ele serve, exclusivamente, para se divertir e passar o tempo, mas não existe emoção verdadeira no jogo. No máximo, ela será acidental. O jogo não serve aos fins sociais da arte, já que ele não comunica ao jogador outras possíveis e relevantes experiências humanas. Ele se resume a apenas satisfazer as vontades do jogador. Nos piores casos, um jogo pode servir apenas como escapismo da realidade se este for, suficientemente, conveniente e convincente. É quando isso acontece que eu suspeito que compulsão por jogos pode surgir. Alguém nessa situação se prende a um jogo, pois, apenas nele, consegue encontrar uma cópia barata da realidade onde todos os problemas são cuidadosamente projetados para que a sua resolução seja prazerosa, o que sabemos que quase nunca acontece no mundo real. O jogo, nesse caso, é uma fantasia e não uma representação da realidade.

Porém, se o oposto for verdade, se as mecânicas do jogo servirem ao propósito de um artista, o jogo será arte, pois nessa situação a experiência que um artista pode criar se torna muito mais completa e consistente. O jogador não precisa imaginar muito para que se aproxime da intenção do autor, porque a experiência se torna muito mais fiel e o jogador entende muito melhor o que o autor queria passar. A humanidade do jogador não só aumenta, como, potencialmente, aumenta muito mais do que qualquer outro espectador de qualquer outra mídia. Isso, na minha opinião, ilustra o grande potencial dos jogos e, também, o seu compromisso social. Só espero que a maioria de nós e dos desenvolvedores de jogos não sejamos egoístas a ponto de sermos incapazes de enxergarmos isso.

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5 respostas para Games são arte?

  1. Thanos disse:

    Games são arte, isso é indiscutível hoje em dia, a não ser por alguns incautos como disse.

    Para mim a questão crucial a ser perguntada é: Games atingem um nível de “Alta Arte” como grandes clássicos da Literatura, Cinema e Teatro (Só para ficar nas artes ficcionais)? E se a resposta for não (já que é relativamente nova comparada com as citadas), algum dia vai alcançar este status?

  2. mr. Poneis disse:

    ♪~ (assovio)

    Pessoalmente eu acredito que arte é bem mais simples que isso… independente de ser real ou não o simples fato de provocar uma reação deveria ser o suficiente para considerar algo como arte. Um por do sol é arte é aceitável. mas verdade seja dita, dizer que cimento fresco é arte fica ridículo.

    Ponto interessante esse de tornar a interatividade um fator que inibe/opõe a ideia de arte. Mas em vez de inibir é mais uma questão de complementar. O fato de existir uma escolha é deliberado da parte do autor e dessa forma sua arte é maior. O mesmo ocorre com a exploração e com os simuladores a beleza está na minúcia com que cada detalhe é tratado. Arrisco dizer que mesmo jogos competitivos (baralho, tabuleiro) são arte, a partir do momento em que saber jogar é uma arte. Charadas/adivinhações também poderiam ser consideradas arte mesmo que elas exijam algum esforço para serem devidamente apreciadas.

    Os resultados diferentes a cada vez que se joga seriam como uma expansão daquilo que o autor original havia planejado, a arte foi além e expandiu-se para além do que o criador havia planejado. Uma experiência semelhante com livros ou filmes seria uma cena que provoca riso, ou lágrimas dependente de quem seja o seu espectador. Ou quando uma música ou peça de teatro diferem dependente de quem as executa.

    Este post como uma expressão da sua opinião também há de ser considerado arte, não?

    Isso tudo termina soando como um Hue tudo é arte, e isso faz de mim um sujeito cego e egoísta, mas estou apenas divagando… Me lembra de um capítulo de Naruto onde dois personagens discutiam se arte deveria ser algo efêmero (A Arte é um estouro), ou imortal (minhas marionetes ainda vão estar aqui mesmo depois que eu me for). O que chama a atenção para o que o Thanos comentou ali em cima.

    até mais ver
    mr. Poneis

    Ps.: Dança, Música (e Canto), Escultura, Pintura (Desenho), Literatura, Teatro (Drama e Comédia). são as seis artes conforme o que os gregos costumavam ensinar. Dai cinema é a sétima arte.

    Uma vez disseram que video games (mais do que todos os jogos em geral) seriam a nona arte. Você saberia me dizer qual seria a oitava? Eu tinho minhas dúvidas se seriam os quadrinhos ou a fotografia. Animação eu acho que faz parte de cinema… Isso que ambos quadrinho e fotografia poderiam ser enquadrados junto com pintura… eu sempre me perco nessa parte…

    • erequito disse:

      Entre “provocar uma reação” e “tudo é arte” não tem muita diferença. Eu admiti no meu texto que a minha abordagem não cobria toda arte. O que me fez escolher ela foi o fato de que a utilidade social é evidente: “Nós nos tornamos pessoas melhores quando entendemos os sentimentos e as intenções do autor”. Além disso, uma condição mais sólida e rígida permite que o “rótulo” de arte tenha mais valor. No momento que tanto cimento fresco quanto a Monalisa tornam-se arte, supõe-se que arte não seja grande coisa. Não há nem porque usar a palavra arte nesse caso, porque a palavra “coisa” já serve pra isso. Se “tudo é arte”, então “qualquer coisa é arte”, então que chamemos tudo de “coisa” e deixemos de ser hipócritas ao sugerir que “arte” tem algum valor.

      É interessante essa sua ideia de que as possibilidades dadas ao jogador expandam o significado da obra, mas não acho que a maioria dos jogos use a interatividade dessa maneira. Dá pra fazer mais com menos. Só que em geral, interatividade é empregada com o objetivo de gerar uma ilusão da realidade e não de maneira a diversificar a obra.

      Meu texto é teórico, opinativo e expositivo. Não respeita a condição que eu empreguei, pois estou tentando apresentar uma descrição objetiva da realidade. Estou oferencendo um modelo teórico com o qual algumas coisas podem ser interprentadas e estou tentando justificá-lo e validá-lo. Arte reflete a natureza humana (na abordagem que eu usei), suas emoções suas perspectivas. Sua apreciação é subjetiva, feita, principalmente, com o coração. O texto por sua vez é analisado com a cabeça.

      Quanto a Naruto, a arte ocidental tinha como objetivo ser eterna, sólida e perfeita, pois, assim, ela se aproximaria de Deus (religião importava até o começo do século XX). Orientais pensaram de uma maneira completamente diferente, a arte para representar a realidade deveria ser fluída assim como a realidade é (opinião oriental). Tudo que não se move, que não flui, que não muda, segundo eles, está morto. É uma afirmação forte e, do ponto de vista dela, a arte mais brilhante ocidental não serve pra nada. Então, ao invés de se aperfeiçoarem e buscarem as linhas gerais eternas do universos, os orientais se focaram em expressar o seu comportamento fluído. Os melhores pintores orientais levavam minutos para pintar, o improviso, por lá, sempre foi muito valorizado.

      Esse conflito entre efêmero e eterno tornou-se mais evidente conforme as culturas se misturaram. A razão da arte estar um caos, hoje em dia, na minha opinião, vem, em parte, disso. Ainda temos que conciliar nossa visões com os orientais. Esse seria um projeto filosófico interessante para algum filósofo do nosso tempo. Esse pessoal dessas universidades humanas poderiam se ocupar disso, ao invés de fazer a 1000ª tese sobre Nietzsche.

      PS: Deve ser gibi mesmo, ou, como os americanos gostam de chamar, Graphic Novel.

  3. Herbert disse:

    Assistir The Good, The Bad and The Ugly não me fazem se sentir um “ser humano melhor” como jogar Hitman Absolution, por exemplo, um dos jogos mais bonitos que já vi, combina gráfico com fotografia, trilha e diálogos de forma perfeita, só peca na jogabilidade, mas não consigo dizer que aquilo não é arte…

    • erequito disse:

      Eu acho que existem jogos que são mais arte que certos filmes. E, por mais que eu não tenho jogado Hitman, talvez ele se encaixe nisso. A impressão que eu tenho do jogo é que ele te põe na pele do personagem e te faz jogar dentro de certos limites, fazendo certas coisas específicas e te expondo a certas situações. Se ele é isto, ele se encaixa no que eu considerei arte.

      Quanto a “ser humano melhor”, não considero como objetivo de arte algo tão explícito assim (sinto que passei essa ideia no post). Arte não é treino de seres humanos. O tipo de “educação” que se recebe da Arte hoje em dia é quase acidental. É praticamente um efeito colateral ao se “mergulhar” na vida de outra pessoa quando esta é expressada na obra de arte. É essa exposição a outros pontos de vista pertencentes a outras pessoas que torna a arte útil/funcional.

      E, sinceramente, é difícil imaginar outro meio capaz de fazer uma pessoar mergulhar na vida de outra tão facilmente quanto alguns jogos conseguem.

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