Chihayafuru

“Quando eu desenho meu mangá, sempre tenho a sensação que estou dirigindo um carro com um dos personagens de Chihayafuru sentado no banco ao meu lado. Eles me dizem um monte de coisas úteis. Eu mal sei o caminho, mas é com a ajuda deles que, de alguma forma, sou capaz de seguir na direção certa.” SUETSUGU, Yuki

Chihayafuru (em português, “Passional”), adaptação do mangá homônimo escrito por Yuki Suetsugu, é um anime que conta com duas temporadas – atingir a marca dos cinquenta episódios hoje não é fácil,  ainda mais com as baixas vendas da primeira temporada – e produzido pelo estúdio Madhouse.

Ayase Chihaya é uma garota que pensa ter um sonho. Não sendo excepcionalmente boa em nada e ingênua no bom sentido da palavra, sempre sonhou em ver sua irmã como a maior modelo do Japão. Essa errônea projeção é quebrada quando Wataya Arata – um colega de classe transferido que, por ser diferente, era alvo da tiração de sarro na turma – lhe diz que um sonho é algo que deve ser sobre si mesma, algo que você precisa trabalhar duro pra alcançar. Ele não só conta que seu sonho é se tornar um mestre em karuta, mas também a convida para uma partida. Nesta, Chihaya fica boquiaberta ao ver a paixão que aquele garoto tem pelo jogo e passa a se interessar por karuta. Pouco a pouco, ela se apaixona cada vez mais pelo esporte à ponto de ter como sonho ser a melhor jogadora do Japão, que também é a melhor jogadora do mundo.

Sinopses à parte, vamos ao que de fato interessa. Uma das coisas que mais sinto falta nas obras atuais é a falta de liberdade do autor. Muitos procuram agradar ao máximo o público (no caso de mangás, também os editores) e jogam suas ideias mais ousadas no lixo, temendo que estas deem errado. Eles dão meia volta e retornam à um porto seguro, pois investir num modelo que já deu certo várias vezes anteriormente é bem mais tranquilo que inovar. Não estou dizendo que trabalhar com o comum é errado e deve ser combatido, mas sim que autores não deveriam desistir do que pensam para trabalhar com um material que eles não tem empatia. Pouco tempo atrás, li Island, um excelente one-shot do Komi Naoshi e tenho certeza que aquilo não seria tão bom se ele não tivesse colocado o que realmente acredita naquelas páginas (ouvi dizer que ele está desperdiçando sua capacidade em Nisekoi por um motivo mais ou menos como esse). Quando você utiliza algo que não é do seu feitio (de certa forma, imposto por pressões externas ou internas), você não consegue articular como quem pensa daquele modo é; o resultado é truncado e pouco tragável.

Entendam que é uma questão de liberdade e não de originalidade que estou tratando aqui. Posso ilustrar de diversas formas, como o porquê do anime de JoJo ter ficado tão bom e uma penca de outras adaptações ficarem tão ruins. Não é uma questão apenas de habilidade. Quer seja uma atitude profissional ou não, você percebe todo o cuidado que a equipe de JoJo tinha com o anime por gostar do original. E esse foi o principal motivo da adaptação ter sido um sucesso (podem agradecer ao Araki, porque ele é chato pra cacete com quem mexe nos seus mangás).

Vocês devem ter chegado aqui e estar se perguntando porquê eu dei uma volta enorme e ainda não falei de Chihayafuru. Bem, a Yuki Suetsugu escreve seu mangá da maneira que deseja. Não que ela não seja cuidadosa (muito pelo contrário), porém é firme no que quer escrever. Esse é o ponto. Ela utiliza capítulos e capítulos (no caso, episódios e episódios) para esmiuçar os sentimentos de personagens secundários, terciários ou quaternários que podem reaparecer com pouca importância, como uma nota de rodapé ou nunca mais. É o caso da garotinha gênio e da senhora na primeira temporada, ou dos dois primeiros times do campeonato nacional da segunda. Ao contrário do desperdício de tempo que muitos esperavam, você cria empatia por eles. Cada um tem seu motivo para gostar de karuta, que os levou a jogar e ajudam a expandir ainda mais o universo do anime – você percebe que não é apenas o núcleo principal que possui fortes vínculos com o esporte, saindo do “mundinho Mizusawa e rivais fervorosos”.

Também há o caso dos garotos fotógrafos, que servem como alívio cômico e pra mostrar uma pitada da Megumu ou da Shinobu gordinha, que mostra sua personalidade excêntrica. De todos, este último poderia ser o mais discutível e considerado “inútil” por alguns, mas eu só tenho uma pergunta a fazer: importa? Casou bem com a personagem, mesmo que não fosse essencial. A Suetsugu queria escrever, não comprometeu sua história e foi divertido pra outros. É desse tipo de liberdade que estou falando.

Um autor comum tremeria nas bases e desistiria ao pensar em colocar tantos personagens numa história. “Não vou conseguir trabalhar com todos eles”; “Diversos núcleos farão o enredo perder o foco”; “No fim, eu mesmo me perderei no meio de tantos personagens” e desistiriam, mesmo que fosse a maneira que eles gostariam de fazê-la, por medo. O que me leva a mais uma pergunta: errar é tão ruim assim? Sempre achei que uma das únicas verdades do senso comum é que a perseverança te fará evoluir cada vez mais. Que ao errar, reerguer-se e seguir em frente, você ficará cada vez melhor. Lembrando uma frase do puta texto do Vaca sobre o exercício da crítica, “qualquer texto que você escrever fala mais de você do que do objeto”, temos aqui um belo exemplo. Não conheço suas outras obras, mas a Suetsugu foi acusada de ter plagiado Slam Dunk e algumas fotografias. Admitiu seu erro – certeza (e com razão) que foi crucificada pela mídia –, se levantou e lançou o sucesso que é Chihayafuru. Deve ter sido bem difícil, mas ela continuou dando o melhor de si.

E é isso que os personagens de Chihayafuru fazem. Eles dão o melhor de si, perdem, mas não se dão por vencidos e continuam a batalhar pelos seus sonhos. Se a Suetsugu sabe que o mundo dos mangás não é fácil, ela transmite isso em sua obra mostrando que o do karuta também não é. São muitos que se esforçam diariamente pra ficar cada vez melhor e para ser o melhor. Não é com um pouco de esforço que conseguirá o resultado desejado, é necessário se dedicar o máximo possível (no caso da Chihaya, às vezes parece até mesmo o impossível). Os resultados suados chegam, gradativamente e, sem dúvida, são muito mais prazerosos.

Voltando aos personagens, posso dizer que a preparação e controle dos diversos núcleos é assombrosa. Eles são completamente esmiuçados e não são esquecidos. Na hora certa, são colocados novamente em evidência e são desenvolvidos num jogo dramático que prende e emociona ainda mais o expectador. Isso não acontece apenas com os personagens principais, mas também com os coadjuvantes citados lá em cima.

“Deuses passionais nunca viram o vermelho que é o Rio Tatsuta”

Assim como a Chihaya no karuta, Chihayafuru tem várias “armas” para mostrar sua competência. Uma delas é o próprio karuta – que eu já deveria ter feito uma pequena explicação sobre. Karuta é um jogo de cartas que utiliza a antologia de poemas do clássico japonês Ogura Hyakunin Isshu. Cada uma das cartas contém os trechos finais de um dos poemas, e o objetivo é pegá-las ao ouvir o início do poema antes do seu adversário. Em cada partida, utiliza-se cinquenta das cem cartas (vinte e cinco para cada) e quem acabar as suas primeiro, vence. Há outras regras importantes (se pegar uma carta do lado do oponente, você deve passar uma sua; por exemplo), mas o anime é eficiente em apresentar aos poucos e de forma dinâmica.

Vendo dessa maneira, quem não viu o anime poderia pensar que é um jogo chato e sonolento. Não poderiam estar mais errados. As partidas são emocionantes. Primeiramente, é bem interessante notar que há várias habilidades distintas no karuta: velocidade, audição, memória, experiência, resistência física, concentração, balanço de jogo e laços com a poesia. Daí, ramificam-se os diferentes estilos de jogo: Sudou tenta desestabilizar o oponente com provocações; a Yumin tenta o mesmo contestando cada carta que pode; o Carteiromu faz um estudo dos pontos fortes e fracos de seus adversários e tenta tirar o melhor proveito disso; Chihaya baseia-se principalmente na sua velocidade e audição; Taichi vale de sua memória (sabendo quais cartas viraram de sílaba única após o jogo já ter andado bastante) e por aí vai. Cada um conhece seus pontos fortes e fracos, e continua a trabalhá-los para ficar cada vez melhor. Também tem um lado mais sentimental, pois as melhores cartas de cada jogador são as que ele possui um forte vínculo.

A parte poética é um deleite especial. Eles não estão decorando e tentando pegar mais rápido cartas quaisquer. Estão fazendo isso com trechos de poesia. Cada um dos poemas têm seu significado, e isso o anime faz questão de sempre nos lembrar. Aqueles que são capazes de ler as cartas numa partida do Mestre ou da Rainha precisam ter um grande conhecimento dos poemas e amar cada um deles para ser capaz de passar todo o sentimento expresso nas suas palavras. O anime exibe isso de forma maravilhosa com a Oe, Yamashiro e pelo Mestre Suo. Seu excêntrico estilo vêm de ser capaz de diferenciar sílibas iguais pelos tons que os leitores dão. Por serem poemas diferentes, as sensações que um bom leitor daria ao recitá-los seria diferente (claro, é surreal, mas não deixa de ser incrivelmente belo).

Já deu pra perceber que muitos são os recursos utilizados para deixar cada partida o mais interessante possível. Além de todos os estilos que, sem dúvida, devem ter vindo de um estudo pesado sobre o esporte e muita criatividade, também tem nuances do próprio jogo como a sorte de leitura ou quando isso acontece e há uma certa vantagem na partida entre times. Tudo isso alia-se a partidas imprevisíveis, que deixam os espectadores eufóricos e com o coração na mão. Você torce por um personagem, sente a pressão da partida (afinal, se não houver nenhum atrativo, esta não tem muita presença) por ter algo novo ou somente por estar bem equlibrada/tendendo a virar para um dos lados e fica com os olhos pregados na tela nos momentos finais. A vitória será mais doce, a derrota menos piedosa. No quesito esporte, Chihayafuru também não deixa nada a desejar.

Não poderia continuar esse texto sem falar da abordagem do companheirismo na obra. As relações entre personagens são moldadas de forma natural, cativante e no tempo certo. De determinadas situações surgem vínculos que fazem uns se importarem com os outros (e também faz você se importar com cada um deles) e que desaguarão numa amizade idealista. São desenvolvimentos que convencem e comovem quem está assistindo. São arrebatadoras as sequências do flashback inicial do anime, que te fazem sentir na pele tudo que os garotos estão passando. O nível não diminui na apresentação dos novos Mizusawa e todo esse momento não é esquecido depois. Eles se ajudam o máximo possível e, nas partidas de equipe, dão gritos de incentivo e preocupam-se demais com seus companheiros. É bonito, é forte, é sincero.

Chihayafuru3“Agora me escute bem, enquanto canto ao céu a canção que você me ensinou”

Como já de praxe nessa obra, isso não se restringe apenas à equipe Mizusawa. Nas equipes Hokuo, Akashi e Fujioka (e também nas próprias academias), seus membros também possuem fortes ligações. A mesma essência é mantida nas relações mentor e aluno e, com as devidas diferenças, entre rivais. Mesmo objetivando vencê-los, não se esquecem do respeito e da admiração que sentem por eles.

Outro aspecto que não poderia deixar de citar é a comédia. Simples, efetiva e combinando com o clima do anime, sempre me deixou com um sorriso bobo e em nada atrapalhou os momentos mais sérios. Felizmente, esse sorriso bobão permeia o anime inteiro, não apenas as cenas de comédia. Chihayafuru faz questão de harmonicamente unir tudo que foi mostrado aqui e mexer com suas emoções. Assim, cria-se o clima perfeito para que cenas que seriam consideradas idiotas em outras situações tenham seu brilho especial.

Quanto à parte técnica, felizmente temos um caso semelhante ao supracitado de JoJo (uma curiosidade que vale ser citada é a seiyuu de Chihaya ter começado a praticar karuta enquanto dublava a personagem). O roteiro é praticamente literal (inclusive, foi este motivo que me permitiu tratar também do mangá), com uma direção afiada que capta todos os nuances da obra e os reproduz de maneira excelente e, ainda, uma ótima trilha sonora que termina de construir com perfeição as cenas. Arrisco dizer que as partidas e muitos outros momentos tocantes ficam ainda melhores no anime, pela presença de movimentos, sons e cores. É uma das melhores adaptações que já vi (senão a melhor).

Como já deve ter dado pra perceber, um dos maiores pontos de Chihayafuru é a diversidade e sua capacidade em articular e entrelaçar bem todos os lados da obra. Para isso, temos um ritmo lento que não a compromete, pois mesmo nos momentos de calmaria somos imersos no enredo. Ainda que tenha personagens profundos, Chihayafuru não é uma obra complexa. Não é necessário fazer um esforço tremendo para acompanhar o andar da narrativa, apenas mergulhar de cabeça no anime. É uma obra, acima de tudo, passional. Um exemplo a ser seguido.

Sobre Hegff

Apenas mais um perdido neste mundo.
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7 respostas para Chihayafuru

  1. Raigho Lupus disse:

    E ainda disse que tinha medo de não ficar bom! Ficou show!

  2. Vinicius disse:

    Eu ainda não acompanhei a obra, não tive essa oportunidade, mas confesso que o texto está ótimo! Parabéns amigo e parabéns ao Blog pelo seu primeiro ano de vida!

  3. Lulu-chan disse:

    Olá! 😀
    Só queria comentar que adorei o seu review sobre Chihayafuru!! *o*
    Você realmente discorreu sobre todos os pontos possíveis a respeito desta obra maravilhosa, em um texto muito bem escrito. Parabéns e obrigada pelo post!
    ^^/

  4. Carla disse:

    Muito bom seu texto! Esse é atualmente meu anime preferido, e você fez jus a ele, e explicou com palavras o que eu tenho dificuldade em expressar para os outros ^^

    Parabéns e pra mim é sempre bom ler sobre Chihayafuru *-*

  5. Mayara disse:

    Oláaaaa, então, a primeira temporada, pelo que vi, foca mais no jogo. E pelo que fiquei sabendo, a segunda foca mais nos sentimentos de amor. Não sei se isso pode ser considerado correto, mas é o que vi por aí e se for realmente, achei bem interessante. Afinal, demonstra que a autora está mais preocupada em apresentar tudo que ela pode em Chihayafuru – amizade, Karuta nos mais diversos níveis, relacionamentos. Como você disse, tudo flui naturalmente, as coisas acontecem ao seu tempo e isso foi um ponto muito positivo para a obra, já que quem vê, vai se afeiçoando aos poucos e mergulhando nesse universo tão lindo. E, nossa, quando eles perdiam, era difícil não se emocionar. Principalmente para quem está lutando por algo e sente na pele o que é “essa dor”. A comédia de Chihayafuru é muito boa, sem exageros como vejo em muitos animes por aí, tentando forçar ao máximo, usando as coisas mais absurdas e inesperadas.
    Realmente, as personagens são muito legais e a gente pode se identificar com elas. Eu me identifiquei muito com o Mesatomu, sou apaixonada por ele. E a Rainha e o Mestre também são personagens fenomenais, bem diferente do que eu imaginava.
    Realmente, valeu a pena ver a primeira temporada e espero terminar a segunda logo. Aé, outra coisa que chamou a minha atenção e está presente no seu texto, é o fato da autora ter trabalho com todas as características possíveis, desde um significado do poema até a memorização. Foi realmente incrível.
    Ótimo texto, ótimo anime!

  6. Mariana disse:

    Fazendo uma citação da citação, “qualquer texto que você escrever fala mais de você do que do objeto” – foi isso que percebi enquanto lia. Chihaya, uma das melhores protagonistas por aí a fora, é passional – seja pelo clube, pelo karuta, pelo Arata. Ao abordar toda a paixão que Chihayafuru transmite a seu público, a redação do texto, além de muito bem feita, é feita por alguém que transmite que leva o anime em algum lugar muito especial – é um texto correto, belo, apaixonante e, no fim de tudo, sim: passional.

  7. Sâmara Dávalos disse:

    estou acompanhando a terceira, tantos anos após a primeira e não me arrependo

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