Minha vez de falar de Tezuka.
Dororo é um mangá de ação, suspense e fantasia ambientado no Japão Feudal infestado de criaturas monstruosas chamadas Youkais. O mangá conta a história de Hyakkimaru, um jovem que teve 48 partes do seu corpo removidas no seu nascimento por causa de um pacto que seu pai fizera com Youkais onde ele buscava poderes para dominar o Japão. Hyakkimaru é acompanhado por Dororo, uma criança abandonada que se auto-intitula o maior ladrão do mundo. Hyakkimaru percorre o Japão com o objetivo de encontrar e matar os 48 youkais afim de reaver as partes do seu corpo perdidas. O mangá foi publicado no Brasil pela New Pop em 4 edições as quais exibo orgulhosamente na minha estante.
Acredito que uma maneira de identificar alguém que é realmente célebre em seu meio é através da sua abordagem quanto a ferramentas de trabalho. Alguém competente usa bem as ferramentas existentes. Alguém excepcional cria as ferramentas que precisa.
Talvez alguns estejam familiarizado com o site Wolfram Alpha. Uma espécie de site de buscas com particularidades bem interessantes. Uma destas são as poderosas ferramentas matemáticas que o site oferece. É possível resolver equações, traçar curvas e gráficos e obter outras informações pertinentes ao estudo da matemática. Para gerenciar esses recursos, o site usa o poderoso software matemático Mathematica. Tanto o site quanto o software são criações de Stephen Wolfram, um cientista britânico.
Entretanto, o mais impressionante disso tudo é que Wolfram não é programador. Ele é físico e estuda uma área consideravelmente complexa que é a física de partículas.
E, para se estudar essa área, são necessárias poderosas ferramentas matemáticas computacionais já que os cálculos e contas são… bastante complexos. O problema é que na época em que Wolfram tentou estudar isso, tais ferramentas não existiam. Então o que ele fez? Criou o Mathematica. E, hoje, é celebrado tanto pelos seus estudos quanto pelo programas que desenvolveu.
Mesmo que o trabalho de Osamu Tezuka pertença a área artística e de entreteninento ao invés das exatas de Wolfram, eu consigo identificar as mesmas características nos trabalhos que conheço do cara. Tanto em Dororo quanto em Metropolis (aqui resenhado pelo nosso caro membro bovino) eu percebo isso.
Tezuka, a todo momento, cria e usa maneiras diferenciadas para expressar o que ele quer no seu mangá. Podem parecer meio brutas quando você compara com todo o refinamento que a arte do mangá japonês sofreu nessas décadas em que ele existe, mas é apaixonante mesmo assim. Movimento? Velocidade? Suspense? Terror? Emoção? É possível ver Tezuka desenvolvendo e experimentando jeitos de expressar todas essas coisas na sua obra.
Dá pra notar em Metropolis, um trabalho bem mais antigo do autor, que o ponto de partida do mangá são as comics infantis americanas. E é de se espantar que desse ponto inicial ele chega bem próximo ao que a gente conhece como mangá e que muitos de nós consideramos drasticamente diferentes dos quadrinhos norte-americanos.
Se eu fosse destacar os principais diferenciais entre as comics americanas e o mangá japonês (não só o de Tezuka, como o geral), conseguiria resumir em dois aspectos: Movimento e Emoção.
Tezuka em Dororo (bem mais do que em Metropolis) quer te emocionar e te surpreender. O mangá está repleto de lutas e de situações trágicas. Todo o plano de fundo dos personagens principais Hyakkimaru e Dororo é construído de forma a (1) emocionar e (2) justificar as batalhas. O resultado é um mangá obscuro, violento, até macabro em algumas partes. E, mesmo assim, não abusa muito do drama. Há muita morte e tragédia, mas há pouca choradeira. Em Dororo, também se nota a tentativa de cativar um público mais velho, pois, mesmo que o traço de Tezuka seja caricato, o mangá, além de obscuro, faz referências a temas mais sérios como a situação de deficientes físicos, o proconceito a pessoas mais pobres, os dramas da guerra e até mesma alguns temas mais idealistas como definição de felicidade e justiça.
Em Metropolis, você vê um Tezuka bem mais brincalhão e experimentador apresentando um trabalho que se distancia bastante do que se conhece como mangá. Já em Dororo, Tezuka tenta apelar bem mais ao público com um trabalho mais objetivo, emocional e encorpado. Eu ainda consigo identificar as “brincadeiras” de Tezuka em Dororo, mas não com o mesmo ar descaradado de Metropolis. Em Dororo, elas tem um ar mais “épico”.
Como eu gosto de velharia e coisas pioneiras, toda a experimentação e recursos usados por Tezuka em Dororo, me soam fantásticos e realmente me impressionam, mas para alguém mais exigente e “certinho”, muitas das bizarrices do autor vão parcer brutas (sem finesse), abruptas e óbvias.
Um exemplo disso é a movimentação presente em quase toda luta. Tezuka abusa de linhas cinéticas em Dororo. Não faz cerimônia. Enche o mangá de linhas pra ter certeza que o leitor compreende o movimento apresentado no quadro. O exagero de linhas também dá noção de grande velocidade. É muito diferente da finesse e organização das linhas cinéticas em Battle Shounens mais recentes. É bruto mesmo, e eu adoro isso, mas consigo ver alguém se irritando.
A exposição de tragédia e de cenas emocionalmente intensas é semelhante. O mangá não é excessivamente dramático a ponto de gastar um capítulo inteiro com a morte de um personagem, mas não poupa o leitor de ver espadas atravessando corpos, montes de corpos, desmembramentos, etc. É quase como se ele tornasse a morte um acontecimento comum.
Toda essa tragédia somada às batalhas, aos Youkais macabros e aos backgrounds sujos e escuros são os elementos que consolidam a atmosfera pesada. O mangá não usa esse clima para passar a ideia de Dark e Edgy e parecer culto como alguns mangás mais recentes fazem. Muito pelo contrário, Dororo quer ser levado a sério como obra séria e adulta. E por mais que a tentativa de soar não-infantil seja bem mais espalhafatosa que a de Metropolis, o mangá consegue isso. Eu tenho medo de algumas sequências de páginas e de alguns Youkais perturbadores e tudo isso apresentado em meio a uma guerra e uma matança desenfreada. Depois de Dororo, por mais que seja caricato, nunca mais considerarei a arte de Tezuka infantil.
Dororo não tem entrelinhas, tem um enredo que seria completamente linear se não fossem pelos poucos flashbacks, organizado em episódios bem separados. Lança assuntos tensos na sua cara como se não fossem nada. O mangá não discute apropriadamente nenhum dos temas que envoca, mas expõe esses mesmos temas de maneira bem única. Não é um material sólido já que tudo que o Tezuka mostra parece solto. Desconexo. Porém, esse tipo de qualidade só se atinge com uma arte e enredo mais refinados e trabalhados.
E essa não é a de Tezuka pelo que pude interpretar de Dororo e Metropolis. Tezuka é o cara que mostra novas coisas, mostra como as usas, e mostra como fazer mangá com elas. Não é o refinador. É o pioneiro. O cara que abre portas e deixa pros outros fechá-las com carinho. E como tal, não só não vejo problemas, como incentivo e gosto que ele faça coisas barulhentas, bagunçadas, brutas e experimentais.
É uma baita pedida pra quem se interessa pelos primórdios e fundações do mangá.
Mto bom, gostei bastante do modo em que vc eskreve sobre a obra do mestre Tezuka.
Acho que o mais impressionante em Dororo é a maneira como ele utiliza a mitologia japonesa. Diferente dos mangás modernos, ele não tenta passar uma ideia realista nem surreal dos youkais. Ele os utiliza exatamente da maneira que eles são. Em nenhum momento tenta-se aplicar lógica num feto gigante que na verdade é o amontoado do espírito de várias crianças mortas. Muito menos ele vai para o lado grotesco da coisa. No começo do capítulo o clima é até cômico. É difícil explicar com exatidão, mas Dororo me passa a impressão de que ele mesmo tenta ser uma história de folclore. Diferente de um Inu-Yasha da vida (que, aliás, depois de ler Dororo perde metade da graça), que usa o folclore apenas como pano de fundo, Dororo abraça as lendas e se torna parte delas. A própria premissa de uma pessoa que não tem 48 partes do corpo e viaja o mundo procurando-as, parece uma história de tradição popular.
Outro ponto, que coincide com o texto sobre Metrópolis, é algo aparentemente recorrente nas obras de Tezuka que é a androginia. Infelizmente, o mangá termina abruptamente justo nessa parte, então não é nada explorado. Mas, quais seriam as consequências daquela revelação em supostos capítulos posteriores? Nem vou me aprofundar muito nisso para evitar spoilers.
Para concluir a ideia do post, pode-se dizer que Dororo foi o precursor do pseudogênero conhecido como “Young Shonen”? Ou seja, aqueles mangás que são essencialmente histórias shonen, mas com alguns elementos proibitivos, como sangue e/ou sexo, que faz com que elas tenham que ser publicadas em títulos “para adultos” (muitas aspas nisso), normalmente com Young no nome (Young Jump, Young Magazine, Young Champion…). Dororo é basicamente isso: um battle shonen com um nível elevado de elementos violentos e grotescos. Não faz isso pra chocar, mas sim como ferramenta para contar sua história.
Parabéns pelo post. 😉