Os pormenores por trás da revolução.
A sinopse de Utena é mais ou menos a seguinte: “Tem uma garota chamada Utena que quer ser um príncipe porque conheceu um príncipe de verdade quando mais jovem e foi salva por ele. Tem outra garota que é disputada como prêmio em duelos e que é a ‘chave para a revolução’, tem uma porrada de bishounens e bishoujos no elenco de personagens, rosas, referência a incestos e viadagem. E, no decorrer do anime, muitas tretas acontecem por causa da garota que serve de prêmio e a Utena está envolvida em todas.”. Ok, agora vamos falar do que importa. Ninguém liga pra sinope.
Se me pedissem para citar os principais temas abordados em Utena, OU se me pedissem ara definir qual é a revolução que Utena propõe, eu não teria dificuldades em responder. Utena é uma obra cujo assunto principal é o feminismo. E, em um segundo plano (mais do ponto de vista de um elemento da estética usada e não, necessariamente, envolvendo uma discussão), homossexualidade.
Isso se torna óbvio quando você notas que os dois personagens principais incorporam duas facetas diferentes das críticas que o feminismo costuma empregar. A primeira é a garota que queria ser um príncipe. A garota que, quando mais jovem foi salva por um príncipe, achou tão legal que resolveu se tornar um. É possível ver todas os conflitos que envolvem Utena (principalmente, os últimos) como obstáculos e etapas afim de alcançar o objetivo da garota de se tornar um príncipe.
Por que apenas meninos podem ser príncipes? Por que garotas estão fadadas a serem princesas a serem salvas? Por que, pelo simples fato do seu sexo ser feminino, uma garota é obrigada a jogar de Peach quando o Mario faz coisas muitos mais interessantes? São essas concepções e conceitos que Utena desafia no decorrer de todo o anime.
O outro lado é exposto pela Himemiya. É a mesma discussão vista de outro ponto de vista. Himemiya é a garota sem livre arbítrio e personalidade que é responsável apenas por servir seu príncipe. Sua existência é unicamente justificada pelo sacríficio que ela realiza ao seu príncipe. E é por causa dela que o príncipe anda livre, leve e solto salvando donzelas enquanto que a Rose Bride (a própria Himemiya) fica em casa sofrendo. A obra não economiza aos ataques a essa visão. A Himemiya é uma personagem central desde o começo e que será exposta a todo o tipo de abuso conforme o enredo avança. SKU faz ela ser estranha e “coitadinha”. Insiste em mostrar, primeiro, essa estranheza e exoticidade de Himemiya (uma maneira de mostrar que algo é errado é mostrar ao espectador que é estranho antes através de um ponto de vista diferente. Ser uma mulher submissa e prestativa é normal na cultura japonesa, mas SKU através do seu enredo, estética, etc faz parecer exótico) e, depois, mostra o seu sofrimento. Tal parte é carregada de dramaticidade e choradeira afim de emocionar o espectador. Nesse momento, o anime tenta fazer o espectador ter pena de Hiemiya transformando ela em uma vítima sofrenilda. São duas maneiras diferentes de conduzir uma crítica. A primeira: descoforto. A segunda: emoção.
Penso que tudo isso é bem legal. Só acho que o caminho até chegar a essa interpretação foi um pouco longo e conturbado demais. E o principal culpado por esse caminho difícil é o próprio anime. Ele gosta de enrolar o espectador. De surpreendê-lo, do nada. Ele te dá fintas. Devo ter desenvolvido umas dez teorias até chegar numa resposta convincente para a pergunta “Qual é que é a desse anime?” (Um ponto interessante é que em certo momento considerei que Shoujo Kakumei Utena talvez não oferecesse uma resposta para essa pergunta. Talvez tudo fosse enrolação). A resposta a que eu cheguei, como disse antes, é feminismo exposto de uma maneira bem particular.
Agora vamos falar do resto que não é “a garota que queria virar o príncipe”, nem “a garota que se sacrificou pelo seu príncipe”. E tem bastante coisa a se falar desse “resto”. Várias bem desnecessárias.
Tirando as duas garotas principais, os personagens de Shoujo Kakumei Utena são usados de forma bem inconsistentes. Esse problema tem origem na maneira com a qual o enredo geralmente os trata. Utena é “episódico” com os seus personagens. O episódio começa, um personagem que não seja a Utena ou a Himemiya é destacado, um trabalho é feito em cima dele e, geralmente, tudo acaba num conflito na arena de duelos. A inconsistência vem do fato que antes desse participação o personagem é “retirado” do armário e depois ele é “pendurado”. Não existe trabalho anterior, nem posterior ao uso desse personagem. Os personagens aparecem nos episódios seguintes como se nada tivesse acontecido. Também não existe nenhuma espécie de “preparação de terreno” em episódios anteriores.
Existem temas associados a cada um dos personagens, mas a abordagem deles é apenas expositiva, não há uma discussão feita em cima dele. Os personagens aparecem, o anime mergulha o espectador no drama deles, e o episódio termina com alguma punchline qualquer. Há diferenças entre fazer uma referência a um tema e apropriadamente discutí-lo. O primeiro tipo é fácil, o segundo, nem tanto. Utena (e a maioria dos animes) abusa do primeiro.
Não existe uma maneira certa de discutir um tema, mas uma maneira comum é através de morais. A típica “moral da história” onde o mocinho só derrotou o vilão porque aprendeu X e Y ou o vilão só perdeu porque ignorou W e Z. He-man faz um trabalho exemplar com essa fórmula.
Utena não precisaria usar essa fórmula. Eu admito que o personagem chegar numa resolução mágica e, por causa dela, ser capaz de enfrentar seus problemas e ter um final feliz é muito clichê. O problema é que não acontece nada em Utena. O espectador fica com pena da situação miserável do personagem e, então, o episódio acaba junto com o assunto e com qualquer consequência possível. E o personagem fica lá pendurado até que o anime decida abusar dele de novo.
Não há consquências, não há desenvolvimento, não há aprendizado, existe apenas a exposição e que fica longe de criar uma discussão útil. Algo irônico é que a Utena enfrenta cada um desses personagens, mas é incapaz de simpatizar com eles ou entendê-los. Ela só desce o cacete neles e fica nisso.
O meu problema com as exposições é que elas estão saturadas de drama e simbologia inútil. SKU abusa desses dois aspectos para tentar exprimir emoção e profundidade. São frases de efeito, diálogos “psicológicos”, música clássica, referências a homossexualidade e incesto, rosas (muitas rosas), silêncios dramáticos, lágrimas, enfim, uma infinidade de coisas e a maioria delas já usadas em outras obras anteriores milhões de vezes. Drama, em geral, é interessante. É uma maneira de apontar para o espectador “olha cara, isso aqui é importante, ta tocando uma música séria, os personagens estão com expressões tensas, alguém morreu/foi ferido/falou algo impactante/etc, você devia estar prestando atenção”. Também induz mais facilmente emoções. O problema é que isso se torna algo vazio quando essa prática é abusada. É que nem pôr açúcar demais no café. Fica ruim. É pra ser usado na quantidade certa, no momento certo.
O excesso de simbologia, por sua vez, é irritante. É uma tentativa descarada de fazer a obra parecer complexa e profunda. A profundidade é obtida de outras maneiras: com seriadade, planejamento, envolvimento, sinceridade com o enredo e personagens. Não propondo charadas ao espectador. Posso até acreditar que “um corvo surgindo na janela atrás de um personagem a cada vez que a imagem é fixada nesse personagem” ou a infinidade de casos parecidos existentes em SKU tenham um significado por trás, mas esse tipo de situação está mais para uma charada. Serve pra trouxa encontrar a interpretação que quiser assistindo anime. “Meu deus, os 4 corvos na janela são uma representação da morte que acontece daqui a 4 episódios desse mesmo personagem. MINDBLOWN!” (Isso não é spoiler, relaxem). O excesso de símbolos permite que qualquer um possa interpretar o que quiser. SKU permite isso. Mas isso também significa que todos esses símbolos não tem um significado em particular.
Com Evangelion sendo exibido alguns anos antes, foi provado que, não só o público não tem problemas com animes que abusam de simbolismos, como gosta disso. Gosta tanto que nas suas próprias interpretações ignora o possível real significado que exista por trás desses símbolos. SKU é a prova de que você consegue gerar o mesmo efeito sem particulamente planejar um significado por trás de toda a simbolagia. Encha de símbolos cools e referências “cultas” e os fãs fazem o resto.
Eu consigo citar duas obras mais recentes que usam um formato parecido com o de SKU. Star Driver que é “Utena com mechas” ao invés de duelos de esgrima. E Mawaru Penguindrm, que contém pinguins. Mawaru também abusa de símbolos, mas diferente de Utena, é muito mais sólido e, de fato, discute os temas que propõe. Existe um trabalho bem mais sofisticado e sério por trás de cada personagem e simbologia. As coisas se conectam melhor e afetam mais significativamente umas às outras. E que, no fim, apresenta um resultado bem mais coeso e que faz sentido.
Mesmo assim, Utena é legal. Tem muita coisa desnecessária. Tem muita coisa que me irrita, mas esse mesmo excesso de simbologia combinado com todo o drama exagerado dá um caráter único ao anime. Lembra-me de um mangá shoujo chamado Ayashi no Ceres. Esse título abusa de clichês o tempo inteiro, mas isso de uma maneira tão sem escrúpulos e sem vergonha, que desperta a minha admiração, além de me fazer rir o tempo todo (mesmo que isso não seja proposital). Por causa disso, o mangá tem personalidade e culhões. Coisas que eu também noto em Utena. É cômico e admirável ver o quão longe a obra vai com a sua estética, com seus personagens e referências a incesto e homossexualidade.
Um dos elementos que garante que Utena tenha esse jeitão único é a trilha sonora. Muita música clássica, muitos corais, muita elegância musical. Elementos que combinam muito bem com todo o visual que o anime apresenta: Rosas, Castelos, Príncipes e Princesas, Só gente bonita e elegante, Esgrima, Duelos, Um Carro, enfim, a estética visual combina bem com o tipo de música que embala o anime. É um pacote único. Você se sente no meio de um salão de festas, bebendo espumante, danaçando valsa sob o som de uma orquesta numa glamurosa festa da realeza britânica.
Por outro lado, talvez por causa de um baixo orçamento, Utena é um anime que tem péssima movimentação. Quase todos os grandes conflitos do anime são resolvidos em duelos, e é triste ver que eles são animados de maneira tão porca. Muitos trechos de animação se repetem em vários duelos, prática que eu só consigo encarar como diminuição de custos. A ação é quebrada e inconstante. E dá pra ver que os personagens apenas sacodem espadas e não há nenhum tipo de estudo por trás da movimentação nesse tipo de combate. Muito menos um esforço para fazer os duelos surpreenderem o espectador ou serem bonitos e empolgantes de assistir. Depois de uma dezena de episódios, eu só não pulava os duelos porque haviam diálogos importantes neles.
Por mais que eu acho que sejam mal usados, eu gosto dos personagens de SKU (com exceção da própria Utena e da Himemiya ironicamente). Apresentam personalidades, objetivos e backgrounds interessantes. É fácil simpatizar com eles e imergir nos seus problemas. Os episódios finais da Black Rose Saga destacaram-se justamente por isso. Os problemas ali apresentados e a esolha dos personagens abordados são muito oportunos. O final em si da saga é decepcionante, mas um pouco antes dele nos é apresentada uma convergência de acontecimentos que culmina em um dos duelos mais bem justificados do anime. Acaba mal, porque o enredo de Utena vai por caminhos estranhos, mas a ideia por trás era ótima.
Eu gosto de Shoujo Kakumei Utena. Acho que o anime tem bolas e algumas mensagens fortes, principalmente, envolvendo feminismo. Um estética única. Também acho que é um baita exagero dizer que é a melhor coisa ever. Não direi que Utena é simples, mas afirmo que é um pouco raso. O excesso de simbologia é um problema sério, porque quem quiser abusar dele e extrair o sentido da vida ou outros tipo de epifanias intensas vai conseguir, mas, no fundo, é uma armadilha justamente para essas pessoas que estão atrás de um material que proporcione isso. O exagero de drama dá charme e identidade ao anime, mas tira um pouco da seriedade e da emoção que eram realmente seu objetivo, porque é difícil levar a sério um anime com tantas frases de efeito, teatralidade, lágrimas e viadagem por unidade de tempo.
De forma resumida, acho que era isso aí mesmo que eu queria falar sobre Utena. E eu me desculpo por não conseguir terminar o texto com uma punchline que remete a frase cool que usei como abertura desse texto e que passaria um feeling de completitude ao texto.
Amamiya? Pelo amor de Ikuhara você viu mesmo Utena? O nome dela é HIMEMIYA e não Amamiya ugh.
Obrigado sobre o aviso. Eu tenho essa mania de ignorar o nome de personagens quando eles são complicados (faço isso até com personagens que gosto). E confiei na minha memória em vez de ser responsável e checar numa fonte mais confiável.
Já corrigi. Me desculpa.
Euriagora, ele se lembrou das novelas com sotaque italiano, Ama miya =), no mais não assisti utena.
Animes ou mangás como este ou Ayashi no Ceres só usam as simbologias para ter algum BG diferente. Não precisa fazer sentido nenhum. E é estranho como os autores não se preocupam em fazer algum tipo de pesquisa que valide esse aspecto da obra. lol
Gostei imenso do texto, mas abordaste pouco sobre como o feminismo se apresenta na narrativa. É um tema interessante para se tratar em um shoujo, onde geralmente temos garotinhas fofinhas e idealizadas. Utena parece estar longe disso (apesar de estar imersa a outros clichês).
Gosto muito deste blog! Vocês poderiam criar um perfil no twitter só pra ele (ou será que já tem?). É mais fácil para acompanhar os novos textos… \õ/
Obrigado pelo elogio. Infelizmente não temos Twitter (e todo mundo aqui tem preguiça de fazer um). Tem só o facebook mesmo. O Hegff e o Rauzi tem twitters e eles usam com alguma frequência, mas só.
Resolvemos fazer um Twitter. Acredito que a gente vá atualizar lá conforme os posts forem saindo. Aqui está:
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O mangá é mil vezes mais interessante que o anime. Utena, na minha opinião, é a melhor protagonista de um mangá shoujo, simplesmente por fugir do padrão de protagonistas que os shoujos geralmente apresentam.
Sim, a animação é barata e os duelos são tediosos. Mas acho que os duelos não são nem lutas de verdade. Como foi citado no texto, a Utena parece não se importar com os personagens. Acho que a ideia é justamente essa. O duelos são a resolução ou “encarar” um problema que você tem, não são nem verdadeiramente um conflito entre ideais diferentes, a vontade de um contra a de outro, mas você enfrentando você mesmo, sem saber. Ao tentar impor a sua vontade e falhar, você começa a se perguntar se você realente está certo, afinal. A Utena serve como um “boneco de treinamento” para o desenvolvimento psicológico dos personagens. Acredito que essa seja a função dela como “príncipe” já que ela, na verdade, parece mais estar interessada em quebrar limites e, ao mesmo, se encaixar em padrões (o que é incrivelmente irônico e deve ser levado em conta o como ela é inconsistente) do que procurar ajudar pessoas. Claro, ela tenta ajudar as pessoas que encontra, mas ela não sai por aí perguntando quem precisa de ajuda, as pessoas a procuram (mesmo que sem saber), exatamente como um monarca.
A culpa do simbolismo está no diretor, creio, que é o mesmo de mawaru, achei estranho você não mencionar isso. Já que o mangá é bem diferente e não tem tantas coisas supérfluas flutuando por aí. O mangá parece uma obra completamente idferente, e acho que é daí que surge a discrepância. Mawaru foi projetado para ser o que é, um anime, com todos os seus detalhes (e sua própria Juri, *ahem*) e não uma adaptação de uma outra mídia, como Utena.
Utena em sí (tirando a tilha sonora) não é realmente incrível, o que faz dele interessante é a época em que foi feito. Os pioneiros sempre são marcantes, timming é tudo ;D
Desculpe pelo textão, queria ser mais breve e só citar alguns pensamentos, (afinal já tem gente demais tentando discutir Utena por aí).