Akumetsu é um mangá escrito por Yoshiaki Tabata e desenhado por Yuki Yugo (dupla que depois faria Wolf Guy: Okami no Monsho), e serializado na Weekly Shonen Champion (lar de Baki the Grappler, Black Jack, Ika Musume, entre outros) entre 2002 e 2006.
O Japão está afundando. Não parece estar, mas está. A dívida do país é um rombo imenso na economia, rombo em grande parte causado pela ganância e corrupção de diversos políticos: obras desnecessárias, obras superfaturadas, pacotes de aposentadoria estupidamente altos, etc. Nenhum figurão enfrenta qualquer tipo de punição legal, claro. Todo mundo sabe disso até certo ponto, a indignação geral só cresce, mas ninguém move um dedo para fazer qualquer coisa contra esse sistema. Qualquer semelhança com outros países não são meras coincidências, mas enfim.
“Ninguém move um dedo”? Bom, não mais. Uma figura inesperada surge no palco principal do Japão: Akumetsu. Uma organização terrorista, um culto religioso fanático, um humano superpoderoso, ninguém sabe a princípio. Mas a motivação de Akumetsu é clara, e parte do próprio nome Akumetsu, que significa literalmente “destruição do mal”. Mal, no caso, são os políticos corruptos. E Akumetsu faz jus ao nome.
Bom, com essa descrição, uma característica essencial do mangá já salta aos olhos. É um mangá que trata, entre outras coisas, de economia e política. E sim, Akumetsu trata disso, e muito bem. Mas isso implica em um ponto importante.
Existe um motivo pelo qual existem muito mais livros didáticos de política e economia do que filmes, seriados televisivos, animações, histórias em quadrinhos ou música. Existe um motivo pelo qual as pessoas recorrem muito mais a livros para aprender esses assuntos. Certos tipos de conhecimento são passados melhor por texto, e esses são alguns deles. Se Akumetsu queria passar isso direito, precisava de texto, muito texto.
E Akumetsu tem muito texto. O protagonista, o já citado Akumetsu, sempre usa monólogos longuíssimos para explicar aquele particular assassinato, porque o político do momento precisa ser “Akumetsado” (“Akumetsu” vira meio que um verbo durante o mangá, detalhe bacana), porque sua ideologia não é exatamente o que as pessoas entenderam, porque ele não é apenas mais um terrorista louco, etc.
Muita gente pensaria que o mangá seria tedioso e irritante por causa disso, mas não é o caso. Os monólogos são uma crítica de qualidade e ao mesmo tempo rasgante, brutal sem ser imbecil, simples e impactantes. Ao encontrar seu primeiro alvo, Akumetsu explica um raciocínio lógico fascinante, tanto por sua impecabilidade quanto por sua intensidade. “10 milhões de yen podem salvar uma vida. (ele diz por que podem) Você roubou 300 milhões de yen. Logo, você matou 30 pessoas, então você é mau.” A obra também acerta em interligar os monólogos com metáforas visuais bacanas, como vermes (parecidos com tênias) se alimentando de dinheiro, ou as simples e eficazes cenas com Aametsu-kun, o mascote chibi de Akumetsu.
Pode-se dizer que o mangá tem dois problemas por causa desses monólogos. O primeiro é sacanagem chamar de problema, mas enfim, o mangá deve ser melhor para alguém familiarizado com a situação japonesa, porque ele obviamente foi feito com o Japão real em mente, para criticar a situação verdadeira do país. Isso é tão notável que certos personagens do mangá são claramente inspirados em pessoas reais (como podemos ver aqui), e parte disso se perde, inevitavelmente, mas o mangá se sustenta muito bem apesar disso. A outra é uma reclamação mais pertinente: certa sensação de “já vi isso antes”, já que vários dos “alvos” são malignos de forma similar ou até mesmo fazem o mal em cooperação, fazendo certos monólogos parecerem muito entre si. Um problema pequeno, que raras vezes é notável, e é mais do que compensado por outro fator: a ação.
“Como assim, ação num mangá de política e economia?” Bom, Akumetsu destrói o mal, como o nome já diz. Mas ele não destrói o mal com assassinatos silenciosos e secretos, ou se infiltrando nas organizações para mudá-las por dentro. Não, ele destrói o mal partindo cabeças ao meio com um machado, ou enterrando pessoas vivas, ou fazendo um Countach cair de uma ponte. Os Akumetsus são experts em diversas artes marciais, e usam isso em vários momentos. As execuções mostradas no mangá são chamativas, intensas e, bom, cheias de ação.
Não existe fim para os benefícios que isso traz para o mangá. A ação atrai leitores que só querem “sanguinho” (se você é assim, me desculpe e não leve pro pessoal), mantém a animação constante e dá todo um tom mais interessante à “destruição do mal” de Akumetsu. O traço da obra também ajuda muito, é um estilo meio grosseiro, bruto, que casa muito bem com a firmeza dos discursos impactantes que o protagonista sempre faz.
Pra resumir a situação, Akumetsu é um mangá que coloca o leitor num curioso dilema: se entregar ao frenético ritmo da ação, com o novo assassinato sempre superando o anterior em ousadia e criatividade, ou parar pra ler uns artigos sobre a economia do Japão e entender de maneira ainda mais aprofundada quem, o que e porque Akumetsu está criticando. Conheço muito poucas obras assim.
Ok, vamos falar um pouco de personagens agora. É um trabalho fácil, na verdade, porque o mangá se centra principalmente na figura dos Akumetsus. Mas podemos citar um ponto interessante comum na maioria dos alvos de Akumetsu. Eles são malignos.
Você poderia pensar que isso está implícito no maldito nome “destruição do mal”, mas nem tanto. Se pensarmos por três segundos, os próprios Akumetsus não são tão bonzinhos assim, matando pessoas sem julgamento legal e basicamente contradizendo tudo que a sociedade valoriza. Dessa forma, talvez os “vilões” pudessem não ser tão vilanescos assim. Mas são. Isso não é um problema de lógica por um motivo óbvio: Akumetsu escolhe seus alvos entre os piores políticos do Japão. Assim, ele naturalmente encontra pessoas malignas. Isso é bem compreensível.
Porém, isso poderia trazer uma consequência séria para o mangá: a validação automática de todas as ações de Akumetsu, por contraste. Algo na linha de “se esse cara é mau, o inimigo dele (Akumetsu) é bom”. E o mangá dança perigosamente na borda do buraco que seria isso, mas não cai. Não por causa dessa questão, pelo menos.
O fator que impede isso é exatamente a moralidade dos Akumetsus, o que talvez seja o ponto mais fascinante do mangá. Porém, não tenho como explicar isso sem spoilers, logo, ZONA DE SPOILERS, PULE PARA O FIM SE QUISER.
Inicialmente, os Akumetsus soam muito como uma organização terrorista qualquer que se considera divina e com o direito de matar todo mundo que bem entender. Mas alguns pontos centrais na moralidade deles mudam basicamente tudo. A maioria deles é mostrada no arco do programa de TV (por volta do capítulo 60), um dos melhores da série. Eu nem precisaria explicar isso aqui, bastaria pedir para você ler aquele arco. Mas como algumas das pessoas lendo essa parte do texto ainda não leram o mangá, vamos tentar.
O que torna os Akumetsus tão diferentes da grande maioria das organizações terroristas é que os Akumetsus não acreditam que são bons. Eles afirmam claramente que também são malignos, sim, também devem ser eliminados, sim. E eles estão sendo eliminados, um por um. O que nos leva à fascinante mentalidade de “um homem, um assassinato”. Ela diminui incrivelmente a eficiência dos assassinatos e da organização em si, mas a partir do momento que se reconhece que os Akumetsus são malignos, ela mata dois coelhos com uma cajadada só. E essa mentalidade não é aplicada por nenhuma das grandes organizações terroristas que conhecemos; logo, apenas em ser única, já é incrivelmente relevante, já coloca os Akumetsus em um grupo separado.
Mas os Akumetsus não acreditam que isso, por si só, justifica o que eles fazem, e de fato não justifica. Outro aspecto central da mentalidade Akumetsu é o clássico “os fins justificam os meios”, ou, em uma descrição mais precisa, “as consequências justificam as causas”. Os Akumetsus não julgam seus potenciais alvos com provas e documentações. Se eles tivessem isso, bastaria mandar pro sistema jurídico e tudo se resolveria. Eles julgam as pessoas basicamente por causa das consequências de seus atos. O que realmente importa não é o quanto um político nadou na merda para fazer algo (porque ele reconhece que até os bons têm que fazer isso), mas o que o país ganhou com isso e o que o cara ganhou com isso. Os executados são os que beneficiaram a si mesmos e prejudicaram o país, e apenas esses. Se alguém nadou na merda e beneficiou o país, Akumetsu simplesmente não vai atacá-lo. Da mesma forma, o que os Akumetsus fazem não é aceitável, e eles admitem isso. Mas acreditam que isso precisa ser feito, porque as conseqüências (um Japão melhor) são necessárias. Eles pagarão por isso, sim, mas eles não vão parar de fazer. Porque precisam.
“Se eu não fizer isso, quem diabos fará?”
Aliás, falando em “matar X, porém não matar Y”, a discriminação é outro ponto forte da moralidade Akumetsu. Muitas organizações terroristas tentam adotar métodos parecidos com os de Akumetsu, mas sempre falham por causa da falta de discriminação. Um carro-bomba, por exemplo, pode matar (e mata) pessoas que não devia. Um míssil, um kamikaze, qualquer coisa do tipo. Mas os Akumetsus evitam todo e qualquer assassinato de pessoas que não merecem, a partir desse critério. Além disso, eles recusam a ajuda de qualquer pessoa que não siga tal critério (e desencorajam da maneira mais ativa possível, matando o falso Akumetsu). Eles mantêm a população segura e mantém os alvos aterrorizados, porque eles simplesmente matam quem se encaixa nos critérios e só. OK, no começo do mangá tem uma sequência que falha nesse quesito, mas o autor fingiu que não escreveu e levou o mangá adiante. O que foi a decisão mais sábia, eu diria.
Um dos momentos que melhor serve de exemplo para toda a questão da mentalidade Akumetsu é uma cena anterior, no arco do falso Akumetsu. Quando o falso Akumetsu (um professor de escola inspirado pelo real Akumetsu, mas que usa métodos “incompatíveis” com a moralidade Akumetsu) manda uma bomba-relógio para certo político, mas ela vai parar nas mãos da inocente secretária do cara. O verdadeiro Akumetsu chega VOANDO (com um jetpack, mas enfim) com capa e máscara, pega a bomba relógio, vai embora (VOANDO) e morre com a explosão.
Toda a estética da situação trás um raciocínio à tona. Nós podemos fazer esse raciocínio no exato momento em que essa cena acontece, mas aquelas pessoas, em especial a secretária, só podem fazer depois do arco do programa de TV (onde o falso Akumetsu é revelado). Um dos raciocínios mais interessantes do mangá inteiro.
Akumetsu mata os culpados, salva os inocentes, sacrifica sua vida quando é necessário, luta contra o governo quando é necessário. Afinal, qual é a diferença entre Akumetsu e um super-herói?
A melhor descrição sobre o que são e pensam os Akumetsus vem, como provavelmente deveria vir, do flashback sobre a formação do grupo, com Katsuragi, a história sobre Perfect One e Hiroshi Jinguuji. Mais especificamente, a parte sobre o primeiro dos Shous, e, porque não, o primeiro dos Akumetsus. Shou Vertica.
Novamente, eu pediria que você lesse aquela parte do mangá, porque eu a considero um dos momentos mais tocantes de qualquer coisa em todos os tempos. Sério. Mas não posso esperar que todo mundo vá fazer isso, então de novo:
Shou Vertica é um homem do século 23, um futuro devastado com a Terra quase inabitável e a raça humana à beira da extinção. Os 238 últimos sobreviventes da raça humana entram numa nave que viaja à beira da velocidade da luz, e partem para Antares, na esperança de encontrar outro mundo habitável. Porém, desentendimentos acontecem a bordo da nave, ela sai do controle, ultrapassa a velocidade da luz (física de história em quadrinhos, ame ou aceite) e desaparece.
Shou Vertica, o único sobrevivente (até onde ele sabe) reaparece no ano 2015, com o mundo totalmente parado. O “peregrino da velocidade da luz” vive num único instante, sendo capaz de se mover livremente pelo espaço, mas não pelo tempo. E o que ele faz?
O mangá fala que Shou Vertica é Katsuragi, e isso é verdade, porém não toda a verdade. Todos os Shous, todos os Akumetsus, são Shou Vertica. Homens com poderes extraordinários, verdade, mas homens que decidiram salvar o mundo. Mudando o curso de balas, deixando mensagens, pulando de prédios com políticos corruptos. Além disso, homens que não veriam as mudanças que causaram. Shou Vertica está preso a seu instante, e os Akumetsus estavam presos a seu prazo de um mês. E acima de tudo, homens que sabiam que tudo podia dar errado. Vertica tinha visto a humanidade falhar em seu tempo. Todos os outros Shous conheciam a história de Vertica, e conheciam o mal melhor que qualquer um. Eles tinham todos os motivos do mundo para acreditar que nada daria certo. Mas eles tentaram, ainda assim.
Como Murase fala na última cena do mangá, os Akumetsus não foram totalmente bem sucedidos. O mal persiste. O Japão não foi salvo. Mas como diria outro mangá, “também existe glória no lado dos derrotados”. E, além disso, os Akumetsus fizeram algo. Pequeno, mas algo. Nagatachou, o principal distrito político japonês, ainda é assombrada pelo fantasma de Akumetsu.
Sabendo que no fim tudo pode dar errado, e sabendo que, mesmo que tudo der certo, não estaremos vivos pra ver. E ainda assim, tentando salvar o mundo. O mundo não seria melhor se todos fôssemos um pouco mais como Shou Vertica?
O mundo não seria melhor se todos fôssemos um pouco mais como Akumetsu?
FIM DOS SPOILERS
Akumetsu, o mangá Akumetsu, tem falhas, tem tropeços, tem erros. Não é perfeito, e acredito que isso seja inegável. Mas a cada página, o mangá é vivo. Cada momento é cheio de toda a ideologia de seu autor, e é sempre notável o quão importante tudo aquilo é para ele. As sensações de Akumetsu são coisas que Yoshiaki Tabata e Yuki Yugo (ou no mínimo Tabata) sentem. A dor, o ódio e o amor do personagem são a dor, o ódio e o amor do autor. Ele coloca sua alma em cada página do mangá.
E, honestamente: isso é tudo que eu espero de arte.
Bom post, bom post. Me deu motivação de ler akumetsu, tá na lista já.
Retratou bem o mangá, só pensei que iria usar aquela sua frase do fórum:
“Akumetsu é Death Note pra macho.”
Além disso acho dificil imaginar que essa dupla escreveu Wolf Guy.
Ah, eu fiz umas referências obscuras aqui e ali (quando falei que os Akumetsus não se consideravam divinos, ao contrário do “Deus do Novo Mundo”), mas se eu destacasse muito as diferenças, o post ia ficar meio hater de Death Note, e eu não queria isso.
Sobre Wolf Guy, é, todo mundo odeia. Preciso ler ainda.
Quando ler Wolf Guy, seria interessante fazer um comprativo entre os dois mangas, pois os protagonistas apesar de terem grandes poderes agem de maneira bem diferente.
“Akumetsu, o mangá Akumetsu, tem falhas, tem tropeços, tem erros. Não é perfeito, e acredito que isso seja inegável. Mas a cada página, o mangá é vivo. Cada momento é cheio de toda a ideologia de seu autor, e é sempre notável o quão importante tudo aquilo é para ele. As sensações de Akumetsu são coisas que Yoshiaki Tabata e Yuki Yugo (ou no mínimo Tabata) sentem. A dor, o ódio e o amor do personagem são a dor, o ódio e o amor do autor. Ele coloca sua alma em cada página do mangá.
E, honestamente: isso é tudo que eu espero de arte”.
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Não li Akumetsu, mas não podia deixar de destacar esse final aí. Brilhante. Ah se todo mundo entendesse isso.