Paixão, Destino, Liberdade, Tragédia… Clamp e RG Veda.
Pô, legal a ideia de um Clamp Day! Não podíamos ficar de fora dessa, então vamos lá.
Olha, eu realmente gosto da Clamp (provavelmente um misto de real qualidade delas com o fato de trabalharem temas que me agradam), e do que li/vi até agora, nada me chamou tanto atenção como RG Veda (1990-1996). De alguma forma esta obra ocupa um lugar especial entre as minhas favoritas. Talvez pelos personagens intensos, talvez pelo cenário védico (o nome é tirado de Rig Veda, um dos quatro Vedas, livros essenciais do hinduísmo), talvez pela ambientação mitológica, talvez pelas ações não preocupadas com moral convencional, talvez pela sensibilidade dos personagens, talvez pela arte refinada, enfim, não sei, talvez por isso tudo, e talvez isso fique claro (ou não) ao longo do texto. Ah, melhor! Liberdade… RG Veda fala de Liberdade…
Acho que o universo mitológico, e nesse caso o védico, pode oferecer um material rico e propício para a Clamp desfilar aquilo que sabe fazer melhor: romance fantástico imerso em paixões (de todos os tipos), aventuras e tragédias, e conduzido com sensibilidade feminina aguçada. Pouco importa se os personagens ou mitos védicos são respeitados rigorosamente ou não, o grande trunfo de RG Veda está em captar um estilo difícil de ser reproduzido nos dias de hoje, que é aquela aventura grandiosa e heroica, enfrentada por personagens não menos grandiosos e heroicos, extremamente intensos e sinceros consigo próprios, capazes de largarem tudo e todos para viverem conforme seus próprios corações, uma decisão tão extrema que só pode levar a um fim trágico, mas sempre escolhido vivamente. Não há espaço para bananas indecisos e divididos internamente em RG Veda (e sim, há vários relacionamentos homoafetivos, mas coragem e capacidade de decidir não são características apenas masculinas ou heterossexuais).
Nas mitologias os personagens costumam ser grandes e livres de preconceitos morais que hoje inundam a pobre consciência moderna. Homossexualismo, traição ao próprio povo, sacrifícios, recusa à responsabilidade, tudo isso e tantas outras ações que seriam normalmente vistas como sujas, pecadoras, ou até criminosas, são nas mitologias e em RG Veda apenas manifestações de desejos íntimos e sinceros. Os personagens se guiam pelo que desejam, e não pelo que a sociedade ou a moral impõem.
O mundo de RG Veda é mágico. Habitado por deuses, humanos e outros seres mitológicos, é um universo comandado e vivido na base das paixões e da luta pelo poder. E claro, os cenários e os personagens são todos apresentados com o detalhismo e refinamento soberbo da arte da Clamp, que destila sensibilidade em cada traço.
Para iniciar a discussão um resumo do plot: 300 anos atrás (que no universo da obra é quase nada), um guerreiro poderoso (Taishaku-ten) se rebelou e matou o Imperador, tornando-se o dominador do reino dos Céus. Mas há uma profecia: Seis Estrelas cairão e derrubarão seu governo tirânico. O cerne das Seis Estrelas é Ashura-ou, último representante do clã Ashura, e encontrado por Yasha-ou, último representante do clã Yasha. Agora eles precisam reunir as demais Estrelas e cumprirem a profecia. Ambos os clãs foram aniquilados por Taishaku-ten.
Bom, agora é hora de tentar se aprofundar.
A PARTIR DAQUI HÁ SPOILERS!
Que o tema é o Destino e a luta contra ele é evidente e anunciado a cada momento na obra. Mas há particularidades e mecanismos que precisam ser observados. De agora em diante a ideia é explorar os principais personagens, para que pouco a pouco vão surgindo os elementos que permitem uma discussão final e aprofundada.
Quem desperta Ashura é Yasha, e aqui surge um movimento que simboliza toda a série: Yasha soube de Ashura através de uma profecia que dizia que ele despertaria aquele que derrubaria o tirânico do poder, mas que também seria o responsável pela sua morte e de seu povo. Um preço bastante elevado a ser pago, mas que Yasha aceita sem titubear, porque a profecia também dizia que aquela pessoa seria a mais querida e amada por ele. Para proteger quem ama Yasha abriu mão de seu povo e inclusive de si mesmo.
Por outro lado temos a resistência do grande antagonista da série, Taishaku-ten, que sabe da profecia e acredita poder quebrá-la. A tônica é: de um lado o grupo de protagonistas que luta para cumprir a profecia, de outro a luta do antagonista que desafia a profecia. É interessante relembrar que nunca houve erro em alguma profecia antes, de modo que elas são certas e absolutas.
O grande charme certamente está nesta luta individual e dramática de cada personagem para fazer cumprir ou desafiar o próprio Destino. Do drama de Yasha já falamos, largou tudo e todos para proteger quem mais ama, e entregou tudo de si nesta missão. Ashura, seu amado, é um menino adorável (de aparência um pouco andrógina) e alegre, que em nada lembra o seu potencial destruidor adormecido internamente. O drama de Ashura está em saber que sua mãe o abandonou e que ele não era uma criança esperada. Sua mãe traiu o próprio clã aliando-se a Taishaku-ten, que na verdade nada mais era do que um plano para subir socialmente ao topo, um desejo devastador de reinar soberanamente sobre deuses e homens. Ashura vive para encontrar a sua mãe e conversar com ela, reconciliar-se. No fim, Ashura encontra sua mãe, mas nesse momento desperta o verdadeiro deus da destruição que vivia dentro de si, e em seguida mata sem dor a sua mãe. Matricídio? Não foi o Ashura atual, mas o verdadeiro Ashura, que não era filho daquela mãe. Vale então como matricídio? De uma forma ou de outra, a cena é forte.
As outras estrelas são Ryuu-ou, Souma, Karura-ou e Kendappa-ou. O primeiro é o jovem rei do clã de Ryuu, um moleque enérgico que abandona a vida monárquica para viajar junto dos protagonistas, apenas com o objetivo de enfrentar desafios, ficar mais forte, e depois derrotar Yasha. Ryuu-ou parte sem saber que é uma Estrela, e de fato apenas descobriria mais tarde. Talvez seja a Estrela com menor protagonismo, pois seu papel parece ser mais o de irmão de Ashura. Mas pensemos melhor: Ryuu-ou não se arrependeu em nenhum momento de ter abandonado a vida fácil em seu reino, nem de saber que se aliar a Yasha colocaria ele e seu reino como traidores e inimigos do Império. Ryuu-ou viu em Yasha um rival e ídolo intransponível, e, portanto, o limiar de desenvolvimento que ele precisaria superar. Por um lado ele foi levado pelo instinto, por outro ele foi “chamado” por Ashura, que continha em seu Destino a reunião das Seis Estrelas. O destino de Ryuu-ou é trágico, pois morrerá pelas mãos do próprio Ashura, quando despertado completamente ao final da série. Mas não se engane, Ryuu-ou não errou, porque RG Veda não se preocupa com finais, mas com motivações, e Ryuu-ou viveu completamente por aquilo que queria. Talvez por isso sua despedida seja em uma belíssima cena com sorriso no rosto. Quantas vezes eu vi personagens morrendo felizes? Inúmeras! Mas confesso que em pouquíssimas de modo tão natural e belo. Aproveito para deixar outra indagação: algum personagem das Seis Estrelas possuía controle sobre sua vontade ou todos não passavam de conduzidos pelo Destino de Ashura-ou? Ryuu-ou escolheu segui-los ou foi coagido pelo Destino a segui-los?
Karura-ou é a rainha do Clã de Karura. Bela mulher que está sempre junto de Garuda, um pássaro que lhe serve como montaria, arma de combate e simbologia de sua personalidade. Karura ama sua irmã menor (Karyobinga, cantora de qualidades inimagináveis) acima de tudo. Karyobinga é levada a força para o palácio de Taishaku-ten, onde é forçada a cantar, e depois é morta e entregue como comida às bestas. Desesperada, porque havia perdido tudo, Karura-ou simula um suicídio e se alia ao grupo de Yasha, na esperança de obter vingança. Agora vejamos: Karura renuncia tudo porque as últimas palavras de sua irmã foram para ela “viver” e “ser livre”, fazer o que quer. De fato, a vida de Karura-ou era limitada a cuidar de sua irmã doente, agora ela está livre. Entretanto, viver com liberdade e o coração, para ela, eram justamente buscar a vingança. Karura-ou nunca viu Yasha-ou com preconceito, porque sabia desde o início que nada, nem seu povo, poderia ser colocado em uma balança que tivesse também sua irmã, seu grande e único tesouro. É engraçado pensar que a libertação que Karyobinga deu a Karura foi justamente algo que a levou de volta a Karyobinga, e, por consequência, à morte, já que Karura será derrotada na batalha final com Taishaku-ten. A liberdade de vida, que deveria resultar em sair daquilo tudo e tentar ser feliz, torna-se uma prisão ligada ao passado e à morte. Mas assim como com Ryuu-ou, sem remorso ou dúvidas, é uma morte por fazer algo que julgava ser essencial. Também aqui pondera-se: a morte de Karyobinga, que levou Karura-ou ao grupo de protagonistas, seria uma peça do Destino? Taishaku-ten, ao fazer coisas que ajudaram o Destino a ser colocado em marcha (desencadeou a ida de Karura ao grupo), estaria sendo peça do Destino ou desafiando-o? Observem a sensibilidade linda da página abaixo… é a minha favorita… a queda, as palavras, a irmã distante…
Agora Souma e Kendappa-ou, as últimas e belas das Seis Estrelas, e que mantém uma relação profunda entre si. Ambas representam clãs que foram devastados por Taishaku-ten (sim, assim como os demais). Souma foi encontrada e cuidada por Kendappa-ou, e desde então passou a nutrir vontade de vingar seu povo, sendo esta a razão para juntar-se a Yasha e Ashura. Kendappa-ou talvez seja a mais fascinante de todos os personagens de RG Veda. Belíssima e harpista incomparável, dotada de inteligência aguçada, capaz de fazer o próprio Taishaku-ten não ousar qualquer movimento contra ela. Kendappa-ou também vive pelos seus próprios desejos. Quando pequena, viu sua família ser morta por Taishaku-ten, mas naquele momento prometeu a si mesma que serviria aquele homem, pela sua força. Kendappa ama os fortes e odeia os fracos, e por isso é amante de Souma. Kendappa nunca traiu os próprios sentimentos, seja por Souma, seja por si mesma em relação a Taishaku-ten, de tal modo que nunca aderiu às Seis Estrelas, mantendo-se firme em seus objetivos. Foi certamente a mais complexa e ousada de todas as Estrelas, a ponto de matar a sua amada Souma na batalha final. Sem poder viver sem ela, comete suicídio logo em seguida. A harpa de Kendappa enaltece o tom melancólico da série. Não importa se seu povo foi morto por aquele homem, se sua família foi morta por aquele homem. Nada importa, a não ser seu desejo profundo. Kendappa, ainda mais que Yasha, leva às últimas consequências a ideia de viver e morrer por aquilo que se deseja.
Acho que depois disso tudo já introduzimos o grande tema: o Destino e o que fazer diante dele. Todos os personagens carregam dois fardos: 1) o Destino que os manda fazer determinada coisa (nem sempre sabem que estão sendo conduzidos); 2) seus desejos íntimos. Todos os personagens são extremamente fieis aos próprios desejos, mas de uma forma ou de outra cumprem seus destinos. A questão que se abre é: estaria o Destino ligado aos nossos desejos? Seriam nossos desejos as peças que constroem o Destino ou eles existem porque o Destino assim os colocou? Perguntas invertidas que mudam radicalmente o significado da obra. Dependendo de como você interpreta, muda tudo.
De todas as ações apenas uma consegue modificar o próprio Destino. Ashura de fato renasce e mata a todos, inclusive Taishaku-ten, e como a profecia dizia, leva as Seis Estrelas à morte também. Com exceção de Yasha-ou. No último instante Ashura (o atual e jovem, não o verdadeiro deus da destruição) se suicida, mas não mata seu amado Yasha-ou. As rodas do Destino que envolvia os dois foram quebradas pelo sentimento que nutriam um pelo outro. Mas aponta-se: Yasha-ou não desafiou o Destino, estava pronto para morrer nas mãos de Ashura-ou, e este não vivia para enfrentar o próprio Destino, mas conseguiu revertê-lo. Ahura-ou tinha como meta encontrar sua mãe e não quebrar seu Destino. Taishaku-ten, que tentava explicitamente vencer o Destino, caiu. No fundo o Destino envolve a todos, “aqueles que não escapam e caem”, “aqueles que assistem”, e “aqueles que mudam com as próprias mãos”. No segundo grupo está o enigmático Kujaku, ser muito antigo que existe para assistir e acompanhar o movimento do Destino, e que acompanha a trama sempre em momentos capitais. Kujaku se sacrifica para fazer renascer Ashura-ou, que assim passa a viver com Yasha-ou. O final é trágico, primeiro porque morrem todos os demais personagens, e segundo porque eles estão solitários em um mundo onde não há quase mais ninguém, já que seus próprios povos foram exterminados. No fim, possuem apenas um ao outro, e só, até o final de seus dias. É o que restou.
FINAL DO SPOILER
Última consideração: o Destino sempre foi uma força extremamente ativa nas mitologias, a tal ponto que abarcava a todos, sejam humanos, sejam deuses. O Destino está acima dos deuses, ou seja, é uma força que se instala como algo emanado da própria lógica do Universo. Nas mitologias antigas os deuses não justificavam tudo. Os antigos tinham noção de que havia muitas coisas incompreensíveis que nem mesmo os temíveis deuses podiam explicar. Isso demonstra como o temor de viver algo programado, sentenciado, e que seríamos apenas marionetes de um roteiro já escrito, talvez seja um dos dramas existenciais mais violentos que acometem a espécie humana. Não sem razão é o drama de Aquiles e de Édipo, personagens fundamentais de duas das obras mais grandiosas da história.
No fim eu mal toquei na palavra-chave oculta: Liberdade. Bom, a partir do que foi dito sobre Destino imagino que já seja possível imaginar a discussão. Somos realmente livres? Observem, TODOS os personagens acabaram vítimas do Destino, mas todos fizeram alguma decisão voluntária e consciente que propiciou o final trágico. Yasha-ou libertou Ashura-ou; Ryuu-ou não precisava deixar seu reino; Souma-ou não precisava segui-los; Karura-ou não precisava tentar vingar sua irmã; Kendappa-ou não precisava cometer suicídio. Se as alternativas contrárias fossem tomadas, o que aconteceria? Portanto, duas indagações que a obra não responde e nem deve responder: 1) Existe Liberdade ou somos pré-determinados?; 2) Se somos pré-determinados, há como lutar contra isto?
Viver para aquilo que você deseja com a força de seu coração, mas verificar se esse desejo não é apenas mais uma peça do Destino, e pior, indagar se esse Destino não está programado para o final trágico. O que é o Destino e quem o escreve, se mesmo os deuses são apenas personagens como nós? É, dei voltas e voltas, mas acho que conseguimos chegar a algum lugar.
Saudações
Interessante…
A proposta daqui para RG Veda é um pouco diferente da que pude notar em outro blog. O foque aqui foi a história e o seu desenrolar, o que torna (ao meu ver) este texto tão fascinante quanto o outro…
E que temas são trabalhados em RG Veda…
Não esperava por tudo isto.
Um ótimo post, sem a menor sombra de dúvidas.
Até mais!
Bah, muito obrigado! Os primeiros volumes de RG Veda não deixam claro que as coisas se conectarão desta forma, já que temas como “Destino” podem cair facilmente em tratamento clichê. As sequências finais tornam as coisas mais claras. Na minha opinião RG Veda aborda com qualidade o tema.
Abraço!
Yo! Ficou muito bom e adorei toda a análise sobre a obra e os personagens, que me parecem mais maduros, especialmente, em relação as suas próprias motivações destrutivas nas quais não podem controlar. Ao que parece, mesmo as suas próprias vontades obedecem o destino. Acho que as perguntas soltas pela CLAMP e que não são respondidas estimulam os fãs a tirarem suas próprias conclusões. Pessoalmente acredito que nós fazemos o nosso destino independente de forças externas. Talvez, se os personagens são seguissem seus desejos o destino poderia ser outro e completamente diferente, não é mesmo? Daí surge o livre arbítrio. Porém, não sei se isto se encaixa em RG Veda, até porque não conheço o mangá (só assisti aos ovas, na verdade). Confesso que estava em dúvida se o comprava ou não. O texto me convenceu a comprar as edições lançadas recentemente pela JBC, conhecer mais e compreender melhor todo o universo criado para esta história. Parabéns pelo texto!
Muito obrigado! Certamente comprarei também os volumes assim que forem saindo pela JBC.
De fato a Clamp não responde as perguntas e deixa pontas soltas, até porque penso que um tema como esse inevitavelmente leva a a isto. E eu sou da opinião que é muito mais importante para uma obra suscitar reflexões no leitor do que oferecer respostas.
E livre-arbítrio se encaixa sim, aliás, fica muito melhor que liberdade haha, o termo que utilizei. Livre-arbítrio dá mais a ideia de luta contra o determinismo e como algo mais interno, mais psicológico, o que remete ainda mais a RG Veda, porque o Destino ali está muito ligado às decisões tomadas a partir de desejos e emoções.
Abraço!
Muito boa sua reflexão! Parabéns, amei! ^-^ E muito bom quando uma obra incita reflexões como em RG Veda.
Ah 2 Perguntas, Você diz ali que Ashura é menino é o mesmo mata Taishaku-ten, mas Ashura na verdade ele não tem sexo não é? Taishaku-ten acaba vivo, morrendo posteriormente…
Me lembrei de um filme muito interessante que vi a pouco tempo “Sr. Ninguém” (Mr. Nobody, 2009)” Que fala sobre luta de um homem contra o caos e o aleatório que interferem no livre-arbítrio das decisões. Passando por Teoria das Cordas da Cosmologia, o Efeito Borboleta da Teoria do Caos, entre outros…
Obrigada ^-^
Muito obrigado pela participação!
Bom, quanto ao gênero do Ashura concordo que cometi esse erro mesmo. Na verdade fui traído pela tradução que sempre utilizou o pronome masculino, mas por necessidade, já que supostamente não teria gênero.
Quanto à ‘morte’ não me referi à ‘morte definitiva’ mas ao momento de sacrifício que acontece antes do final, mais ao ato em si.
Mr. Nobody é um filme interessante mesmo. As outras obras do autor também são de valor, sobretudo “Toto Le Héros”.